13 de março de 2024 o grande cineasta José Mojica Marins completaria 88 anos e o Canal Brasil faz uma exibição de seus filmes remasterizados, oito em versões inéditas. Aliás, no Dialéticas da Imagem, eu tô fazendo uma revisão de alguns filmes do Mojica e escrevi sobre Finis Hominis, que vai fazer parte da Mostra…
Fábulas Negras (2014) – Uma união de grandes diretores do cinema brasileiro
As Fábulas Negras é um longa-metragem lançado em 2014, tratando-se de uma compilação de cinco curtas-metragens dirigidos por Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf, Joel Caetano e José Mojica Marins. Três diretores que tiveram origens parecidas e encaram a forma de fazer seus filmes de forma semelhante, artesanalmente, mão de autor, uso dos cânones do horror e a vontade de fazer e de criar um horror puramente nacional, se juntam com um dos predecessores do horror brasileira e provavelmente grande influência para eles: Mojica, o Zé do Caixão.
Como já dito trata-se de um longa metragem formado por curtas, As Fábulas Negras, idealizada por Rodrigo Aragão, traz filmes que tem o objetivo de recontar histórias do folclore brasileiro de uma forma subversiva e macabra. Um dos maiores méritos do filme é como ele consegue representar a cultura brasileira, sua regionalidade e variedade cultural de quase todo o país nos curtas, pois nada mais nacional do que o próprio folclore brasileiro. Os curtas são: O Monstro do Esgoto, por Rodrigo Aragão, Pampa Feroz, por Petter Baiestorf, O Saci, por José Mojica Marins, Loira do Banheiro, por Joel Caetano e Casa de Iara, por Rodrigo Aragão. Todos interligados por uma mini-trama em que crianças brincam e começam a contar histórias de horror da região quando passam por locais que os fazem lembrar delas, tudo isso com um imaginário puramente infantil, contudo subvertido pela dramatização com imagens cheias de violência e uma escatologia que parece adaptado do naturalismo literário.
A estética dos filmes segue um padrão, uma fotografia escura, amarelada, com uma cor de terra, remetendo ao interior dos estados brasileiros, local onde a ação da maioria dos curtas ocorrem, fazendo muito sentido com a sua temática, pois o interior do país é onde essas histórias são muito consumidas e compartilhadas formando um imaginário popular. A transição de histórias e planos se dá por um efeito de projetor mantendo grãos na imagem, conversando com a fotografia que dá um toque envelhecido para a imagem.
O Monstro do Esgoto, curta-metragem que abre a antologia é o único, entre os demais, que aborda uma crítica política. Ele repreende ferrenhamente, de forma cômica e irônica, a corrupção e mau uso do dinheiro público, principalmente em pequenas cidades mas que também cabe ao país como um todo, e ao sistema de serviços públicos ineficiente. É interessante como ele faz essa crítica, porque a direção usa de um elemento narrativo clássico do horror, que é a loucura causada por um evento sobrenatural, mas nesse caso a loucura do protagonista se dá pela ineficiência de um serviço público e a sensação impotência do personagem diante da situação que não consegue resolver, mesmo seguindo todos os procedimentos legais recomendados para a resolução do problema, ele é mal atendido pelos funcionários responsáveis, é obrigado a pagar multas, ou seja uma total situação de impunidade. Ao final o monstro que seu filho achou no encanamento não era o maior perigo do curta e sim o monstro que seu pai se tornou graças a ineficiência e desprezo do órgão público.
Sobre o monstro que o garoto guardava em uma caixa, deve-se notar uma reprodução de uma ferramenta clássica, muito utilizada em Friday the 13th (1980) entre outros filmes, a câmera subjetiva para não mostrar o monstro, utilizando do texto fílmico para dialogar sobre a máxima do horror que é o mostrar ou não mostrar, ou o quanto mostrar. Ele se mantém escondido até os minutos finais do curta, onde é um padrão ser a hora de mostrar, então temos os monstros e o gore sendo usados e abusados em tela.
Pampa Feroz, que vem em sequência, dirigido por Petter Baiestorf tem como característica ser bastante regional dentre os demais da coletânea, trazendo caricaturas típicas do Sul do país através do uso de signos muito característicos do lugar, como por exemplo a figura do gaúcho, grandes fazendas e trabalhadores delas, chimarrão, o sotaque e por fim o estilo caricato dos capatazes. A temática também se alia com o imaginário de um interior rural, pois a figura do lobisomem é parte de uma história que tem origem em meios rurais muito por causa do cenário e do que a imaginação pode inventar em locais isolados a noite.
O episódio é sobre uma dúvida instaurada na cabeça dos locais, onde uma fera matou um dos homens do dono da fazenda, e eles estão tentando descobrir quem é. A história faz um comentário crítico sobre preconceito religioso, visto que eles colocam a culpa em um senhor que mora nos arredores da grande, chamando-o de “macumbeiro”, então temos aí uma leve discussão acerca das origens do medo no que não conhecemos e como ele fica mais forte dentro de grupos que compartilham a falta de conhecimento sobre aquilo que é novo, neste caso, a intolerância religiosa.
O Saci dirigido por José Mojica traz uma releitura de um dos personagens mais clássicos do folclore brasileiro, desta vez com uma visão muito mais perversa. Novamente o “monstro” não é mostrado, e se assemelha muito a uma versão moderna e brasileira do demônio Pazuzu de o Exorcista (1973), pois o Saci não mais azeda o leite, dá nó na crina de cavalo ou rouba ovos de galinhas, ele agora pune e caça quem desrespeita os espíritos da floresta com o desejo de possuir e enlouquecer seus alvos.
A referência ao Exorcista está presente na sequência de exorcismo, contudo ela não passa de apenas uma referência, pois toda a cena é bem “abrasileirada”, com um pastor (o próprio Zé do Caixão) gritando trechos da Bíblia, seguida de uma montagem alternada e sufocante entre possuída e o grupo exorcizando, além da movimentação de câmera nauseante e os planos fechados que ajudam a causar esse efeito incômodo tão desejado pelo veterano diretor. Uma curiosidade sobre a cena do exorcismo, e outros frames seguintes são as pontas feitas pela equipe neste curta metragem.
A Loira do Banheiro de Joel Caetano traz um outro clássico das lendas urbanas brasileiras, de um jeito brasileiro mas com um flerte no cinema japonês de horror, o internato de garotas e até a forma como elas se vestem lembram muito os filmes orientais. Um dos frames do filme, as luzes piscam, um banheiro abandonado e uma garota está de costas no centro do lugar, enquanto outra garota se aproxima dela, alternando entre inserts da mão que se aproxima da figura estranha e closes do rosto apreensivo, homenageia os clássicos como Ju-On (2002) ou Ringu (1998), tanto pelo set-up da cena quanto seu clímax final, o cenário também ajuda a remeter as histórias de assombrações asiáticas, tanto no cinema como nos jogos, o banheiro apodrecido lembra muito de Silent Hill, por exemplo.
O efeito desse flerte entre cinema brasileiro e japonês traz um resultado interessante e uma boa capacidade de articular os cânones, já que a colorização, a locação, os personagens e o estilo da escola/internato cria uma mistura interessante de nacionalidades formando uma estética nova e própria, que causa uma confusão de local e anacrônica, pois ele utiliza uma lenda brasileira e a mescla com nacionalidades características de outros cinemas. É um curta exemplo de como o gênero horror possui um caráter simbionte de englobar diversos cânones de diversas regiões e gêneros cinematográficos criando uma estética nova a partir da boa reutilização do já conhecido.
A Casa de Iara é o último curta-metragem, de menor duração e o mais imagético de todos eles, com poucos diálogos, o foco dele é ser forte visualmente falando, seja na violência quanto na erotização culminando na mistura dos dois elementos, por uma sequência de efeito incômodo e indigesto, trazendo contigo uma das principais características do gênero, a externalidade, o espectador certamente vai se incomodar com o que está em tela configurando-se em um sentimento, no melhor dos sentidos, de repulsa na platéia
O último curta se amarra com a história dos garotos porque a casa de Iara é o último lugar por onde as crianças percorrem, na casa o monstro do primeiro curta ataca um dos meninos no último frame, que acaba com um close no rosto do garoto, novamente muito expressivo e exagerado, longe de qualquer realismo/naturalismo, reforçando outro cânone narrativo do final pessimista em que a vítima morre e a sensação de insegurança jamais vai acabar.
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