Ygor Pires*

“Todo bom filme é um documento do seu tempo”. O cineasta e crítico Éric Rohmer cunhou uma frase cirúrgica para descrever o poder social de cinema de representar a mentalidade de uma época. Esta afirmativa também diz muito sobre o tema da edição dessa revista, já que as releituras e os remakes de uma obra original conversam com o que foi produzido no passado e conferem outros sentidos ao revisitar aquela história. E a cada novo contexto, estamos diante de sociedades, visões de mundo, culturas e debates políticos que se transformam e fazem transbordar suas características nos filmes criados.

Quando o assunto é o terror, a ligação entre cinema, política e sociedade se manifesta com força. Aqueles que acreditam que cinema de terror é puro escapismo, uma forma de desligar o cérebro e deixar de pensar em questões políticas e sociais está redondamente enganado. Este gênero traduz os medos coletivos e as ansiedades de uma geração através das metáforas colocadas por monstros, assassinos, figuras sobrenaturais, maldições… No caso das releituras feitas por filmes de terror, as possibilidades de trabalhar variados sentidos para o medo em períodos históricos distintos crescem. Um bom exemplo é Invasores de corpos, produção que já teve quatro versões para reler o temor da invasão de seres alienígenas.

Originalmente, fomos apresentados ao livro Invasores de corpos escrito por Jack Finney em 1955. Na trama do autor, terror e ficção científica se encontram para contar a reviravolta na vida do Dr. Miles Bennell em uma cidadezinha tranquila da Califórnia. O médico começa a ser procurado por vários pacientes que insistem que algum familiar deles não seriam mais os mesmos e algo teria possuído seus corpos e mentes. O que, inicialmente, foi encarado como delírio coletivo logo passa a ser levado mais a sério quando um corpo sem traços completos de humanidade é encontrado. 

A primeira versão do livro coube ao diretor Don Siegel em 1956. Vampiros de almas foi o filme que começou a definir o universo cinematográfico da história criada por Jack Finney. A partir daí, o público começou a ter contato com uma trama sobre a invasão de alienígenas que tomaram conta do corpo dos humanos, substituindo-os por cópias idênticas dos hospedeiros. Os invasores replicaram os corpos humanos através de uma espécie de clonagem, na qual as réplicas se desenvolviam em casulos que caíram do céu até assumirem as características físicas do humano que deveriam substituir. A troca se daria efetivamente no estágio final para a captura das memórias e conhecimentos, ou seja, durante o sono.

Miles Bennell é o típico médico de cidade pequena que conhece e atende todos os habitantes. As angústias crescem quando ele é procurado por pessoas que afirmam que seus familiares não eram mais seus verdadeiros familiares. Não leva muito tempo para que essas aflições se conectem com algo maior, pois, como transparece em um diálogo entre Miles e o psiquiatra local, a primeira suspeita pode ser de uma neurose em massa gerada por preocupações com o que estava acontecendo no mundo à época. Mas, o que poderia estar ocorrendo naquele tempo para preocupar tanto?

A década de 1950 foi marcada pela Guerra Fria, período de disputa entre EUA e URSS pela hegemonia mundial e pela expansão, respectivamente, do capitalismo e do socialismo. Conflitos militares diretos entre as duas superpotências não aconteceram, porém o temor jamais abandonava quem viveu a época. Isso porque norte-americanos investiram em espionagem e armamentos e criaram uma apreensão permanente quanto aos riscos da destruição mundial por uma guerra nuclear. Como não utilizar a Guerra Fria como fonte de terror? As sequências em que os receptáculos com os corpos replicantes são descobertos no jardim da casa de Miles e a fuga do médico pela estrada pedindo ajuda desesperadamente são ótimos exemplos de construção de tensão e horror.

Seria então viável considerar que Vampiros de almas por ter sido feito nos EUA em tempos de Guerra Fria teria um subtexto anticomunista? Uma leitura nesse sentido se torna possível quando percebemos que os alienígenas poderiam ser uma metáfora para a infiltração de agentes comunistas, que parecem ser pessoas comuns, mas escondem o segredo quanto às suas verdadeiras identidades. A sensação crescente de histeria e de paranóia decorrente de teorias de conspiração também se enquadram nessa representação. E analisar o plano dos invasores e seu modus operandi parecem tirar todas as dúvidas que poderiam restar: o objetivo é apagar as individualidades, deixando todas as pessoas iguais e sem emoções fazendo uma multidão perseguir o médico e sua namorada.

Esta leitura seria a definitiva sobre o filme? Nada diferente poderia sair da trama? Como a arte não se limita a uma única interpretação, Vampiros de almas ainda pode ser entendido como uma crítica ao macarthismo praticado na década de 1950 nos EUA. Em referência ao senador Joseph McCarthy, o macarthismo foi uma política de perseguição e repressão a todos os cidadãos acusados de subversão e simpatia pelo socialismo. Em outra leitura, o repúdio à “caça às bruxas” do período poderia ser o subtexto de uma história na qual o protagonista é perseguido por pensar e agir diferente do que é imposto socialmente. 

Vinte e dois anos depois, uma segunda adaptação do livro foi  feita. Invasores de corpos, dirigido por Philip Kaufman, foi lançado em 1978 e manteve muitos elementos já presentes no antecessor. O protagonista continua sendo um profissional da ciência (antes um médico, dessa vez um agente de saúde pública acompanhado por uma cientista), que enfrenta algo que extrapola a lógica terrena. Além disso, cenas clássicas (a descoberta do primeiro copo alienígena e a fuga após a aparição de mais corpos) ainda existem, mas são construídas e abordadas de maneiras relativamente diferentes.

Diretores distintos, visões distintas para o mesmo material prévio. A segunda versão possui alterações na localização da ação, que passa a ser em uma cidade maior em São Francisco. Sendo assim, o contexto urbano propicia cenas em locações mais movimentadas (a tentativa de fuga de Matthew e Elizabeth pelas ruas congestionadas de transeuntes) e um horror semelhante a um pesadelo noturno (perseguições por ruas mal iluminadas com figuras ocultas pelas sombras). Ao mesmo tempo, a narrativa se torna linear mostrando a chegada do organismo alienígena do espaço e seus efeitos na Terra, além de ter uma abordagem que faz a sensação de conspiração vir menos do esforço de descobrir quem foi substituído e mais da percepção da rapidez com que a “infestação” se propaga.

Anos diferentes de lançamento, subtextos históricos também diferentes. O contexto da Guerra Fria deixa de ser o primeiro plano e a realidade específica dos EUA na década de 1970 assume maior destaque. Naqueles anos, a sociedade estadunidense sofria com o crescimento da criminalidade urbana, inclusive nas cidades menores e subúrbios do país. Tais áreas poderiam parecer mais seguras em função da distância em relação aos grandes centros urbanos, locais de maior incidência das contradições e mazelas sociais do capitalismo. Entretanto, a maior segurança era uma ilusão e a violência também chegava ali, como filmes slasher do tipo Halloween representaram.

Consequentemente, o paralelo com uma paranóia anticomunista ou uma crítica ao macarthismo não fazem mais parte da narrativa. Philip Kaufman trabalha o medo e a histeria em face do avanço de uma espécie de epidemia. Não se trata de uma questão de crise sanitária, mas de devastação do meio ambiente, afinal a disseminação do alienígena se dá através de uma contaminação típica de parasitas na vegetação da região. E quando o plano dos invasores é revelado, a analogia com a preservação ou destruição da natureza se torna mais visível porque vêm à tona questões de adaptação e sobrevivência em um ambiente adverso. Este debate ressoa no contexto de desenvolvimento do movimento ambientalista ao redor do mundo.

A mudança na direção igualmente afeta a criação de cenas expressivas de tensão. Além de desestabilizar o eixo da câmera e gerar a desorientação dos planos quando Matthew faz ligações em telefones públicos, Philip Kaufman investe um pouco mais na dimensão de ficção científica da trama. Existe um destaque relativamente maior para uma pseudociência que descreve a mutação dos corpos replicados e as origens da transmissão dos organismos extraterrestres. Além disso, o filme de 1978 transita por uma ambiguidade em seu desfecho que sugere a possibilidade de não sabermos se os humanos se adaptariam e sobreviveriam em um mundo transformado. Quando esta dúvida é respondida, a invasão é ressignificada para um escopo ainda maior.

Diferenças de estilos devido à assinatura do diretor marcam a terceira versão da obra. Em 1993, Abel Ferrara comanda Invasores de corpos e também opera com semelhanças e alterações. Alguns aspectos da mitologia são mantidos, como o modus operandi dos alienígenas, a conclusão do processo de substituição dos alvos durante o sono e a demonstração de emoções como elemento diferenciador dos humanos e dos extraterrestres. Por outro lado, a narrativa se modifica para seguir um químico que leva sua família para uma base militar, já que foi designado para inspecionar o tratamento de produtos tóxicos. É nesse novo espaço que a invasão ocorre e a sensação de conspiração se desenvolve.

Chegamos aos anos 1990 e algumas leituras foram feitas associando a propagação dos aliens ao contexto de avanço de doenças sexualmente transmissíveis. Isto é possível porque a discussão temática é menos evidente. Outras interpretações cabem para uma história que gira em torno do processo de apagamento das emoções e das individualidades em favor de uma unidade que colocaria fim aos conflitos. Pode remeter a uma metáfora para os valores de hierarquia e disciplina das Forças Armadas, que estão presentes na base militar onde a ação se passa. E pode se inspirar nos desentendimentos familiares da jovem Marti com seu pai durante a adolescência, como a hora de voltar para casa à noite e permissão ou não de beber, que tratam da afirmação de um adolescente como um indivíduo diferente dos pais.

Abel Ferrara não só modifica alguns aspectos da mitologia e os subtextos como também apresenta uma sensibilidade própria para os eventos. A abordagem é objetiva e vai direto ao ponto com uma decupagem econômica de poucos planos para resolver uma cena e com a menor duração de todos os  filmes (pouco mais de uma hora e vinte minutos). Outra marca especial dada pelo diretor é enfatizar o horror corporal nas sequências que mostram as transformações dos corpos replicados na forma humana e as mortes de alguns alienígenas. Assim, o público sente a repulsa dessas profundas mudanças físicas e o filme dialoga com um subgênero que combina muito bem com o universo diegético.

Além do horror corporal, o diretor utiliza outros recursos visuais para criar momentos expressivos. Aproveitando-se da amplitude dos cenários, da profundidade de campo elevada e do jogo de luz e sombra captado pelas frestas das janelas, Abel Ferrara constrói sequências tensas e esteticamente poderosas. É desse modo que ele filma a descoberta por parte de Steve de que sua mulher foi substituída e tenta atraí-lo para uma substituição, e o encontro do químico com o médico do exército transtornado pela infestação de alienígenas que é confrontado por militares já substituídos. 

Outro diferencial do filme é a abordagem ousada da luta dos protagonistas pelo direito de continuar tendo a própria individualidade e seus sentimentos. Na abertura, Marti narra em voice over e em tom desolado que tudo aquilo que houve com sua família deve ter alguma razão de ser. Nas sequências finais em que Marti tem um confronto mortal com um ente querido e narra os ataques feitos pelo céu contra os aliens, a questão emocional volta a ganhar contornos complexos. Sentimentos como a desolação da abertura e o desejo de vingança movido por ódio do desfecho demonstram que os personagens não querem abrir mão de suas emoções, mesmo que elas sejam melancólicas, agressivas e violentas.

A última versão já feita sobre o livro de Jack Finney foi lançada em 2007 pelo diretor Oliver Hirschbiegel. Dentro da mitologia já consagrada, ele conduz outras alterações significativas em Invasores: a psicóloga Carol Bennell tenta sobreviver junto com seu filho Oliver a uma epidemia alienígena com a ajuda do médico Ben Driscoll. Enquanto eles tentam escapar de um vírus que se propaga com grande velocidade, o menino demonstra ser imune a qualquer contaminação. Em termos espaciais, este filme escolha se passar em uma grande metrópole onde o alcance da ameaça se intensifica.

A chegada nos anos 2000 possibilita pensar em outro subtexto relacionado ao contexto. No início do século XXI, epidemias provocadas por vírus se proliferaram, como a SARS ocorrida na Ásia. Esta informação dialoga com a origem do vírus alienígena que persegue os personagens, no caso a queda de um ônibus espacial contaminado por organismos vindos do espaço. na forma de contágio para se transformar em um ser desprovido de emoções, no caso o contato com secreções liberadas pelas pessoas contaminadas, e nas menções feitas na TV a respeito de uma epidemia viral que exige a fabricação de vacinas. O problema está no fato de que as alterações na mitologia soam superficiais e não conseguem dar conta dos novos sentidos que o tratamento dessa invasão como uma doença contagiosa criam.

Isso acontece porque os simbolismos, tão fortes nas obras anteriores, se tornam frágeis na quarta adaptação. Ao tentar dar uma roupagem geopolítica à transformação dos contaminados, a narrativa busca uma complexidade que não é bem trabalhada ao ser apenas citada pontualmente. Junto a epidemia viral, haveria uma epidemia de tragédias cometidas pelos seres humanos (guerras, terrorismo…). Na visão dos alienígenas, essas tragédias seriam contidas se as emoções fossem controladas. Até seria possível tentar articular uma relação mais profunda entre as duas discussões, porém ela permanece solta e tratada com excessiva simplicidade no único momento em que é, de fato, mencionada com maior destaque (o noticiário na TV que aborda acordos de paz feitos entre inimigos históricos.

Da mesma maneira que o subtexto contextual se mantém frágil, falta uma unidade maior para a abordagem que se pretende dar à ameaça alienígena. Em termos estilísticos, os vilões são tratados como um organismo espacial estranho ao planeta, assume o simbolismo de uma epidemia viral, aproxima-se de uma história de zumbis por conta da característica dos ataques e reforça o caráter de ficção científica ao criar explicações para o vírus. Ao invés de ser uma construção dinâmica que consiga enxergar as diferentes possibilidades desse universo, o filme parece perdido tentando encontrar sua própria identidade e não conseguindo se sentir confortável em nenhuma das tentativas.

A falta de vitalidade também se manifesta nas sequências que pretendiam ser mais expressivas e lembradas após a sessão. Porém, assim como os simbolismos se perdem nessa releitura, momentos marcantes são raros. O que foi construído para gerar tensão falha ao ter pouca energia (o flashforward da abertura e o risco de contaminação da protagonista durante o sono); o que não precisaria ser exaustivamente explicado peca pelo excesso de didatismo em detalhar cada pequena informação; e o que deveria ser uma sequência de ação empolgante cai na armadilha de ser um momento genérico de perseguição como tantos outros. No fim das contas, qualquer sensação de conspiração ou tensão não provoca grande efeito emocional por ser tão fria e extremamente calculada.

1956, 1978, 1993 e 2007. Quatro contextos diversos para contar a mesma história imaginada no livro de Jack Finney. Invasores de corpos foi lido e relido com mais ou menos subtextos históricos, mais ou menos nuances simbólicas, mais ou menos abordagens formais de seus realizadores. Em cada uma das obras, percebemos como o momento histórico influencia na sua construção e na recepção. Nada estranho ou nenhuma coincidência em relação a isso, já que o terror se transforma com o tempo. A cada novo tempo, os medos coletivos se transformam. A cada novo tempo, os alienígenas invasores podem dizer muita coisa sobre o que assombra o ser humano. 

*professor de História e doutorando pela UERJ no RJ. Estudo relações entre cinema e história e arrisco alguns textos de crítica de cinema. Adoro terror e sofro torcendo pelo Vasco.