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Curso: King – da literatura as telas

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Editorial #1

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“You can’t tame what’s meant to be wild”: interditos de sexo e morte no subgênero dos filmes de lobisomem

Giovanna Venturini*

Quando analisamos o cinema de horror e seus diferentes subgêneros, um chama a atenção por seu fascínio e longevidade: há décadas e décadas, produzimos filmes de lobisomens. Os anos passam, e sempre temos novas histórias de lobos para contar. Por que nos atraímos tanto por este tema? O que nos fascina nas fronteiras entre o humano e o bestial? Este texto busca explorar estes limites, e entender que tipo de monstro nasce destes encontros. Talvez já esteja evidente, mas fica o aviso: aqui há lobos.

Esta limiaridade entre humano e animal é um tema recorrente para diversos autores das humanidades que buscam entender as formas pelas quais organizamos nosso mundo. Segundo Georges Bataille, um dos principais pontos da existência humana é sua descontinuidade: nascemos e morremos sozinhos, cientes deste fato em meio a uma natureza que não se importa com nossa individualidade – algo de velho tem que morrer para que o novo nasça; e este ciclo eterno não para por qualquer motivo que seja. Este movimento é percebido por nós como uma violência e, a fim de proteger nossa própria organização de mundo, criamos os interditos: uma espécie de tabu que envolve as partes mais irracionais de nosso ser e que mais estão relacionadas a esta natureza violenta; tudo aquilo que nos lembra da descontinuidade de nossa existência nesse ciclo de vida-morte-vida. Estes interditos se aplicam, sobretudo, ao sexo e à morte; e exatamente por este caráter de proibição que possuem, também trazem obrigatoriamente uma grande carga de fascínio (BATAILLE, 2020).

Na teoria de Bataille, estes interditos – que têm vários desdobramentos e muitas vezes se mesclam – servem como uma distinção entre aquilo que é humano e aquilo que é animal: uma maneira de se diferenciar dessa natureza insensível, de tentar estruturar o mundo humano de alguma forma. Giorgio Agamben também parte desta distinção entre humanidade e animalidade, usando as diferentes formas de vida estipuladas por Aristóteles para traçar estes limites, especialmente considerando a dimensão política do homem: bios, enquanto vida dentro da sociedade com as devidas atribuições da pólis; e zoé, enquanto vida meramente posta em termos biológicos e funcionais do organismo. Em sua discussão sobre sacralidade e estado de exceção, Agamben estabelece que o homo sacer é aquele que, por seus crimes, não é mais reconhecido como um humano dotado de bios; ao ter seus direitos suspensos, sobra somente sua zoé, o que o equipara a um animal – e o torna passível de ser morto (AGAMBEN, 2007).

Estes são alguns exemplos de autores que tratam do tema ao longo da História; a condição humana sempre foi um assunto que nos fascinou como um todo. Contudo, pensar sobre a parte animal que existe dentro de nós também gera outros desdobramentos; afinal, se olharmos por tempo suficiente para os limites entre o humano e o bestial, vamos notar que em algum momento estas fronteiras se confundem. Em algum ponto, o homem e a besta se encontram, e os interditos que traçamos enquanto sociedade não são suficientes para conter a violência. E é justamente nesta fronteira que reside a figura do lobisomem.

A maioria das sociedades possui mitos a respeito de humanos que se transformam: de acordo com Montague Summers, a licantropia é um tema tremendamente abrangente – e se considerarmos todos os tipos de metamorfos, o campo se expande mais ainda (SUMMERS, 2003). Este fascínio com os licantropos se manifesta em diversas formas de arte, incluindo o cinema de horror, o que acabou gerando um extenso subgênero de filmes de lobisomem. Dentro desta categoria – que por se tratar de um subgênero muito prolífico e extenso, seria impossível esgotar em um único texto -, vamos analisar três filmes e sua relação com a figura do lobisomem como limiar dos interditos de sexo e morte: The Howling (1981), The Company Of Wolves (1984) e Ginger Snaps (2000).

Começando por The Howling (no Brasil: Grito de Horror), lançado em 1981 – ano de lançamento de outros dois relevantes filmes de lobisomem: An American Werewolf In London e Wolfen – e veio a gerar uma franquia de filmes, sendo um marco do subgênero com suas já clássicas cenas de transformações. Os paralelos entre violência e licantropia já estão presentes desde a primeira cena do filme, com a fala do Dr. George Waggner sobre a tentativa da humanidade em reprimir seus próprios instintos, na qual afirma que não devemos tentar domar os poderes que vêm dessa animalidade. Apesar de Waggner estar falando especificamente de lobisomens (como se descobre ao longo do filme), esta cena encontra ecos em Bataille, que diz que o ser humano arcaico cultuou divindades animais, possivelmente em busca de uma conexão com os poderes associados aos excessos da natureza – violência da qual estas sociedades haviam se afastado anteriormente através dos interditos, mas cuja transgressão ainda era prevista até certo ponto (BATAILLE, 2020).

A história começa acompanhando Karen White, uma âncora de televisão que serve de isca para ajudar a polícia a encontrar o assassino em série Eddie Quist. Após sobreviver por pouco a um encontro com Quist em um cinema pornô (outra aproximação entre sexo e morte), Karen fica muito traumatizada e o Dr. Waggner sugere que esta vá para a Colônia – um retiro no campo para o qual o médico envia seus pacientes em tratamento. Karen e seu esposo Bill vão para o retiro, e uma série de acontecimentos se desenrola a partir deste ponto.

O fascínio pela morte aparece de forma recorrente durante a trama, especialmente ligado ao poder que os lobisomens possuem enquanto híbridos: são retratados como seres violentos, que gostam de matar e têm preferência por consumir carne crua. Enquanto estão na forma humana, usam roupas feitas de pele e cordões de presas de animais. Ademais, os licantropos estão em uma condição de limiar até mesmo em relação a sua própria mortalidade: apesar de não poderem ser mortos por armas convencionais, são vulneráveis ao fogo e às balas de prata – o que, de certo modo, os torna imortais e mortais ao mesmo tempo.

Além do instinto assassino generalizado dos lobisomens do filme, o tema da sexualidade também é um fator de importância: isso se torna especialmente claro no caso de Marsha, personagem que passa toda a trama com a função de femme fatale, dedicando-se especialmente a seduzir Bill. O momento que mais claramente retrata o caráter de limiaridade dos licantropos é a cena de sexo entre Bill e Marsha no meio da floresta (que, por si só, já é um lugar que se afasta da ideia de “civilização” humana e remete ao selvagem – lugar do homo sacer de Agamben por excelência): tendo sido ferido por um lobisomem anteriormente, Bill para de resistir aos avanços de Marsha e consuma sua relação com ela na floresta, com ambos os personagens se tornando cada vez mais violentos durante o ato e gradualmente se transformando em lobos até chegarem no clímax. O próprio ponto do orgasmo também é um tema relevante em Bataille, que o coloca como um momento de transgressão que desafia a ideia de descontinuidade da vida e, portanto, da própria fronteira humano-animal – seja pelo caráter de reprodução, seja pela ideia de exposição da carne e perder-se no outro (BATAILLE, 2020). Este aspecto sexual da figura do lobisomem também se encontra em The Company Of Wolves (no Brasil: A Companhia dos Lobos), filme de horror e fantasia lançado em 1984.

Formado por uma amálgama de histórias que remetem aos contos de fadas clássicos, especialmente Chapeuzinho Vermelho, este filme tem a sexualidade feminina como um de seus temas centrais. Durante toda a trama, a protagonista Rosaleen é constantemente alertada sobre os perigos da floresta e dos lobisomens – sua avó repetidamente diz para que a neta “não confie em homens cujas sobrancelhas se juntam” -, sempre no intuito de preservação da inocência.

Mesmo nas relações de Rosaleen com as pessoas ao seu redor e nas personagens que povoam as histórias da avó, todo o filme é perpassado pelo mesmo aviso: jovens mulheres têm de tomar cuidado com homens que possam abusar de sua inexperiência. É o mesmo aviso contido na história de Chapeuzinho Vermelho, afinal: boas moças devem andar sempre no caminho certo, ou serão devoradas por lobos.
Desta forma, estabelecendo os devidos paralelos com Chapeuzinho Vermelho, o lobisomem neste filme serve como uma representação dos desejos proibidos, especialmente para as mulheres. Na lógica dos interditos, trata mais do sexo do que da morte, e especialmente do tipo de desejo sexual que foge ao controle da mente e ameaça desorganizar todo o mundo racional – ou, no caso das moças, devorá-las por completo. O personagem que mais condensa estes conceitos na trama é o caçador, pelo qual Rosaleen se atrai desde o primeiro momento em que o vê, ignorando os avisos da avó. Posteriormente, quando o caçador se revela como um lobisomem e mata a avó, Rosaleen fica dividida entre se proteger do perigo e ceder a seu fascínio pelo lobo.

A maior parte do filme se passa dentro de um sonho da protagonista: a última sequência mostra o caçador junto a Rosaleen, que também acaba se transformando em lobo. Ambos começam a correr pela floresta, e a eles se junta uma alcateia: nesta cena, os limiares entre sonho e realidade se mesclam, e o filme encerra com Rosaleen acordando assustada com seu quarto tomado por lobos. Mais uma vez, os lobos aparecem nas fronteiras das definições do nosso mundo: sonho e realidade, humano e animal, razão e desejo.
Um ponto interessante que podemos notar até o momento é o papel das mulheres nos filmes analisados: em The Howling (1981), as mulheres da trama ou são retratadas como sedutoras animalescas ou terminam como vítimas indefesas; já em The Company Of Wolves (1984), seguindo os temas de Chapeuzinho Vermelho, a sexualidade feminina está sempre condicionada a uma ameaça externa que tenta sempre acabar com a inocência. Estes papeis femininos se alteram quando tratamos no último filme de nossa análise: Ginger Snaps, de 2000. Mantendo o título original ao ser lançado no Brasil, Ginger Snaps acompanha as irmãs Ginger e Brigitte Fitzgerald, consideradas esquisitas no colégio e fascinadas pela morte. O interdito da morte e o fascínio de sua transgressão se mostra presente desde o início na caracterização das irmãs: ambas têm um pacto de morte uma com a outra (sair do subúrbio ou morrer juntas aos 16 anos), e têm como passatempo fazer sessões de fotos mórbidas.

Além dos temas relacionados à morte e à sexualidade, Ginger Snaps trata também da menstruação (que, em Bataille, também está associada à violência que percebemos nos ciclos da natureza). No filme, a menarca de Ginger coincide com o ataque de um licantropo, e a partir deste ponto seu comportamento começa a mudar: a personagem se torna mais ousada e agressiva, seu corpo sofre uma série de transformações – suas feridas se regeneram rapidamente, surgem pêlos e uma cauda começa a crescer aos poucos -, mas uma das mudanças mais relevantes é seu despertar sexual.
Apesar dos outros filmes que analisamos também tratarem do impulso sexual e de morte, Ginger Snaps chama a atenção por tratar destes temas com um protagonismo feminino muito forte: além de tratar da menstruação, o filme não coloca suas personagens de forma unidimensional. Brigitte reage às transformações da irmã ao mesmo tempo em que tenta se entender neste novo mundo que se apresenta, não sendo somente uma vítima indefesa. Ginger não se resume a uma femme fatale e sua sexualidade não é algo a ser protegido do lobo: ao transitar nos limiares que a figura do lobisomem pressupõe, a personagem é dona de seus impulsos e se entrega a eles. Mesmo nos pontos em que Ginger se relaciona sexualmente com outros personagens, o foco não é nos homens, mas no exercício de sua própria sexualidade. Mesmo sem controle das transformações que sofre, Ginger ainda tem agência e protagonismo – afinal, ela é o lobo.
Como dito antes, seria impossível esgotar todo o subgênero de lobisomens em um só texto; a ideia aqui foi explorar as diferentes formas que a limiaridade da figura do lobisomem é tratada nos filmes escolhidos. Talvez uma das razões pelas quais este subgênero do horror seja tão prolífico se encontre exatamente nas questões que a ideia do lobisomem levanta: o que nos faz humanos? O que é que nos separa do que há de bestial, e como nossos impulsos desafiam estes limites? De quais violências a besta dentro de nós é capaz? O cinema de horror não estabeleceu uma resposta pronta, mas talvez a frase de The Howling que dá título a este texto nos ajude a pensar: “you can’t tame what’s meant to be wild, Doc. It just ain’t natural.”¹

NOTAS

1 – Tradução livre: “você não pode domar o que deveria ser selvagem, Doutor. Não é natural.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Vol I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2007.BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
SUMMERS, Montague. The Werewolf in Lore and Legend. New York: Dover Publications
Inc., 2003

* Pesquisadora, escritora e ilustradora. Mestranda em Direito (UFJF), pós-graduanda em Direito Penal e
Criminologia (Introcrim) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Estudos Sobre Morte e Pós Morte (LABÔ PUCSP). Parte de suas pesquisas tratam sobre o tabu da morte e seu impacto nas concepções de monstruosidade, especialmente na literatura e no cinema de horror.


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