Stefany Sohn Stettler*

O terror, como gênero discursivo, é o modo pelo qual organizamos o que nos assusta, retomando e representando ansiedades coletivas. Através da interpretação daquilo que é infamiliar, o gênero do horror trabalha com as expectativas de subversão de regras, negociando proibições em situações que são igualmente assustadoras e prazerosas. Ordenando a realidade em um modelo que se encontra entre a ficção e documentário, o terror explora a manipulação da linha tênue entre ilusão e o que é real (DUNKER 2018). Luckhurst (2016) sugere que o horror, a fantasia e a ficção científica são “ficções planetárias”, capazes de capturar as interconexões mundanas de forma que o realismo, que o autor considera “domesticado”, não consegue.

O zumbi surgiu inicialmente como uma síntese, hibridização ou imbricação entre crenças de nativos da África Ocidental Francesa e a ideologia cristã ocidental no contexto colonial do Haiti. Em um processo parecido com o sincretismo das religiões de matriz africana brasileiras, os nativos ofereciam comida e vinho às estátuas da Virgem Maria ao mesmo tempo que rezavam para seus familiares falecidos por proteção (BISHOP, 2008). Assim, da mesma forma que outros monstros clássicos do Terror, o zumbi tem sua origem no folclore. Contudo, a mitologia do zumbi é uma exclusiva das Américas, enquanto lobisomens e vampiros têm origem europeia. O zumbi foi apropriado pela cultura estadunidense através de relatos etnográficos fornecidos por autores como William Seabrook – que escreveu o livro The Magic Island (1929 [2016]) – e Zora Neale Hurston – com o seu Tell my Horse: Voodoo and Life in Haiti and Jamaica (1938 [2009]). A primeira aparição cinematográfica do monstro colonial foi em White Zombie (1932), dirigido pelos irmãos Halperin, estrelado por Bela Lugosi e inspirado nos relatos de Seabrook.

White Zombie (1932), cujo cenário é um Haiti colonial, reproduz as histórias perpetuadas por The Magic Island (2016): um jovem casal branco viajando ao país para seu casamento é convencido por Charles Beaumont – secretamente apaixonado pela protagonista, Madeline – a performar a cerimônia em sua propriedade. Com a assistência de Murder Legendre, o Monsieur Beaumont zumbifica a mocinha. O sucesso deste pioneiro do cinema de zumbis reside na curiosidade e ameaça sentida pela audiência ocidental: o medo de que os protagonistas brancos se tornassem subjugados, dominados e “colonizados” pelos nativos pagãos.
Até 1968, o ano de lançamento de Night of the Living Dead, de George A. Romero, o cinema de zumbis estava condicionado à relação dos monstros com o Voodoo. O debut do diretor reestruturou a criatura em suas origens, modus operandi e representações: “Night of the Living Dead é apresentado em um palco muito pessimista: o do apocalipse. Um estranho fenômeno domina a sociedade, resultando em um inferno literal na terra onde os mortos andam e ninguém está seguro” (BISHOP, 2006, p. 202 tradução nossa). Esta mudança na representação dos mortos-vivos possibilitou certa aproximação com o contexto histórico da sociedade estadunidense: Direitos Civis, guerra do Vietnã, a Grande Depressão e questões raciais (ver DOTSON, 2006). Outra linha de raciocínio desenvolvida ao longo dos anos no cinema do gênero é a comparação entre as criaturas com consumidores do sistema capitalista, em filmes como Dawn of the Dead (1978; 2004) e Shaun of the Dead (2004).

Mas o terror causado por mídias do gênero está alicerçado no reconhecimento do humano no monstro. Bishop (2006) argumenta que que zumbis são infamiliares – retomando as teorias de Freud (1920 [2020]) – por serem metáforas para a própria humanidade. Eles não pensam ou agem motivados pela razão, mas por um instinto cego que não reconhece individualidade, consciência ou comunicação. A popularidade dos zumbis é explicada pela forma como são capazes de articular os medos em relação à perda de autonomia e capacidade científica de causar apocalipses (KRZYWINSKA, 2008 apud FILHO, 2018). Além disso, a criatura ficcional que melhor evoca o tabu da morte, acima de fantasmas e vampiros, é o próprio zumbi.
Contudo, parte destas mídias usa apenas o cenário apocalíptico como forma de representar outras angústias humanas: suas rivalidades. Cohen (2012, p. 406) argumenta que “Formamos nossos coletivos para lutar contra esses monstros, e então nos voltamos uns contra os outros e exibimos uma agressão zumbi contra o que deveria ser nossa comunidade”. Séries como The Walking Dead (2010-atual) e filmes como 28 Days Later (2002) e Day of the Dead (1985) têm seus respectivos desenvolvimentos em torno de grupos rivais de sobreviventes, estes dois últimos exemplos opondo militares, como vilões, e outras classes de cientistas e civis. “Os aplicadores da lei são descritos como incompetentes e atrasados […], então as pessoas devem se defender sozinhas” (BISHOP, 2006, p. 202, tradução nossa).

O cânone zumbi é variado e difícil de ser definido, porém Boom (2011, p. 8) distingue nove categorias de mortos-vivos: Os nove tipos, brevemente definidos, são os seguintes: (1) zombie drone: uma pessoa cuja vontade lhe foi tirada, resultando em obediência servil; (2) zombie ghoul: fusão do zumbi e do ghoul, que perdeu a vontade e se alimenta de carne; (3) tech zombie: pessoas que perderam a vontade pelo uso de algum dispositivo tecnológico; (4) bio zombie: semelhante aos zumbis tecnológicos, exceto que algum elemento biológico, natural ou químico é o meio que rouba a vontade das pessoas; (5) zombie channel: uma pessoa que ressuscitou e alguma outra entidade possuiu sua forma; (6) psychological zombie: pessoa que perdeu a vontade em decorrência de algum condicionamento psicológico; (7) cultural zombie: em geral, refere-se ao tipo de zumbi que localizamos dentro da cultura popular; (8) zombie ghost: não realmente um zumbi, mas alguém que retornou dos mortos com todas ou a maioria de suas faculdades intactas; (6) zombie ruse: truque comum em romances para jovens adultos, onde o “zumbi” acaba não sendo zumbi.

 

Estas categorias abordam o zumbi haitiano colonial, do zumbi contemporâneo e incluem filmes como The Ghost Breakers (1940), onde a aparição de um – único – zumbi é apenas um truque para espantar os protagonistas, caracterizada como um zombie ruse.

De maneira geral, com exceção de filmes como Return of the Living Dead (1985), Re-animator (1985) e Pontypool (2008), zumbis não possuem capacidade de linguagem. Nesse sentido, a comunicação é critério de definição de humanidade. Em longas-metragens como Maggie (2015), Busanhaeng (2019) e na série The Walking Dead (2010-atual), a fala tem a função de diferenciar humanos de não-humanos. Em Pontypool (2008), os protagonistas Sydney e Grant percebem que a infecção zumbi se alastra através da linguagem – unicamente a língua inglesa – e que o próprio entendimento do idioma causa a transformação (SOLDAT-JAFFE, 2014).

O canibalismo também é característica comum ao cânone zumbi, sobretudo no que diz respeito à sua versão contemporânea. Kee (2011) localiza o caráter antropofágico do zumbi em suas raízes no Voodoo haitiano, que era demonizado pelos colonizadores como um ritual preenchido de canibalismo, sacrifício humano e violação de túmulos, na tentativa de, por meio da narrativa, justificar a colonização do Haiti. No entanto, no cenário apocalíptico de inspiração malthusiana, quanto mais zumbis, menos alimentos disponíveis para as criaturas. Raglin (2014) discute que a energia obtida pelos mortos-vivos é fundamentada em um processo de auto-canibalização: o catabolismo de gordura e massa magra. Este processo é canonizado em The Walking Dead (2010-atual) no terceiro episódio da terceira temporada, chamado Walk with Me. Nele, o Governador, vilão, pergunta: “Se eles não estão comendo, por que eles não passam fome?” e é respondido com “Eles estão… morrendo de fome, eles só fazem isso mais devagar do que nós”.

Mais devagares que humanos, os zumbis também o são andando. Pelo menos, alguns deles. Raglin (2014) postula a Romero Unit (RU), calculada pela cronometragem da velocidade dos zumbis em The Night of the Living Dead (1968), que percorrem dois passos em 0,50 hertz (Hz), equivalendo a 1RU. Contudo, os zumbis no cinema variam dessa medida e demonstram apenas “uma transição discreta na mecânica da marcha: eles andam desordenadamente ou um pouco mais rapidamente, ou correm a velocidades impressionantes. Nenhum exemplo de zumbis jogging (ou seja, correndo a um ritmo de 8 a 9 minutos por milha) foi encontrado no cinema” (RAGLIN, 2014, p. 235, tradução nossa). A análise dividida por décadas revela que em 1960, os zumbis andavam em torno de 1,5RU, e a partir dos anos 2000, a média subiu para 2,7RU (RAGLIN, 2014). É possível pensar que a velocidade do zumbi acompanhou os avanços tecnológicos, que, cada vez mais eficientes, diminuíram a capacidade de foco do espectador, que agora exige muito mais ação, tensão e desenvolvimento em menos tempo. Há uma disputa entre os fãs do gênero se o primeiro longa-metragem a apresentar zumbis rápidos foi Return of the Living Dead (1985) ou 28 Days Later (2002). A querela, que divide quase 20 anos de histórias de zumbi, não tem resolução acadêmica após a definição da Romero Unit (RU).

Há uma certa noção de memória residual presente nos zumbis, como se alguma parte deles ainda fosse capaz de lembrar suas rotinas pré-morte ou pré-transformação: Em Day of the Dead (1985), o zumbi Bub é capaz de atender um telefone, prestar continência aos soldados do complexo onde está instalado e mais tarde, matar – não por mordida, mas por arma de fogo – um de seus algozes. Em The Walking Dead (2010-atual), o primeiro episódio da primeira temporada apresenta uma Jenny zumbificada que é capaz de andar até sua antiga varanda e girar a maçaneta. Mais tarde, durante a terceira temporada, a mesma série representa experiências conduzidas em relação à memória residual. Em Land of the Dead (2005), os zumbis são capazes de organizarem-se e produzirem uma reviravolta no esquema societário no mundo pós-apocalíptico. Em Cargo (2017), o perfume de sua esposa é capaz de restaurar a humanidade de Andy por alguns segundos para que ele pudesse constatar que sua filha estava a salvo. Shaun of the Dead (2004), além de representar um zumbi possuidor de memória residual, representa um que se orienta e se identifica pelo grunhido.

É reconhecido que talvez zumbis identificam suas vítimas e uns aos outros através do cheiro. Em The Walking Dead (2010-atual), durante o sexto episódio da nona temporada – de nome Who Are You Now? –, são apresentados os Whisperers, humanos que camuflam-se utilizando restos mortais de humanos, mas são desmascarados pelo grupo de sobreviventes que a série acompanha pela capacidade de fala. Neste episódio, a comunidade – com características de alcateia –, infiltrada em uma horda zumbi, parece caçar o grupo protagonista. Os Whisperers, retomando as categorias de Boom (2011), pertencem à categoria do zombie ruse. The Girl with all the Gifts (2016) apresenta os Hungries, infectados por um fungo parasita. Enquanto a primeira geração de mortos-vivos possui comportamento errático e motivado pelo consumo de carne humana, a segunda geração está em processo simbiótico com o fungo e é capaz de organizar-se, armar armadilhas e, sobretudo, farejar humanos – suas presas.

Os filmes de zumbi, nesta imensidão de impossibilidades que violam pactos biológicos, simbólicos e sociais, revelam uma figura de tabu, de contradições e até mesmo, de desejo. O zumbi, representante da alteridade, da outridade, autoriza sua própria morte, que justifica-se na ausência de humanidade. Isso explica, superficialmente, o deslize do gênero para o cinema de ação, no qual o enredo se desenrola mais do que na história, contexto, diálogos e fotografia, mas nas próprias matanças de zumbis, que ocorrem das maneiras mais criativas possíveis. Destaco aqui os filmes Army of the Dead (2021) e Zombieland (2009). O exercício controlado da fantasia que se materializa nas mídias desse gênero explicita, na representação do morto-vivo, a própria fragmentação da humanidade sob o signo do cristianismo e do capitalismo.

REFERÊNCIAS
BISHOP, Kyle. Raising the Dead: Unearthing the Non-Literary Origins of Zombie Cinema. IN: Journal of Popular Film and Television, 33.4, 2006. p. 196–205.
BISHOP, Kyle. The Sub-Subaltern Monster: Imperialist Hegemony and the Cinematic Voodoo Zombie. IN: The Journal of American Culture, 31.2, 2008. p. 141–152.
BOOM, Kevin. And the Dead Shall Rise. IN: CHRISTIE, D.; LAURO, S. J. (Eds.). Better off Dead: The Evolution of the Zombie as Post-Human. Nova Iorque: Fordham University Press, 2011. p. 05-08.
COHEN, Jeffrey Jerome. Undead: A Zombie Oriented Ontology. IN: Journal of the Fantastic in the Arts, v. 23, n. 3, 2012. p. 393-412.
DOTSON, Jennifer Whitney. Considering blackness in George A. Romero’s Night of

the Living Dead: an historical exploration. Tese [Mestrado em English].
Louisiana State University, Baton Rouge, Louisiana, Estados Unidos. 2006. 80f.
DUNKER, Christian. Zumbis, fantasmas, vampiros e frankensteins. IN: PENHA, D.; GONSALVES, R. (Orgs.) Ensaios sobre os mortos-vivos. São Paulo: Aller, 2018. p. 15-36.
FILHO, Lúcio Reis. A usabilidade do morto-vivo na sociedade pós-industrial. IN: PENHA, D.; GONSALVES, R. (Orgs.) Ensaios sobre os mortos-vivos. São Paulo: Aller, 2018. p. 79-106.
FREUD, Sigmund. O Infamiliar. Trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
HURSTON, Zora Neale. Tell my Horse: Voodoo and Life in Haiti and Jamaica. Nova Iorque: HarperCollins, 2009.
KEE, Chera. ‘‘They are not men…. they are dead bodies’’: From Cannibal to Zombie and Back Again. IN: CHRISTIE, D.; LAURO, S. J. (Eds.). Better off Dead: The Evolution of the Zombie as Post-Human. Nova Iorque: Fordham University Press, 2011. p. 09-23.
LUCKHURST, Roger. Zombies: A Cultural History. Reino Unido: Reaktion Books. 2016.
RAGLIN, Jack. Zombie Physiology. IN: COMENTALE, E. P.; JAFFE, A. (Eds.). The Year’s Work at the Zombie Research Center. Bloomington: Indiana University Press, 2014). p. 227-247.
SEABROOK, William. The Magic Island. Mineola, Nova Iorque: Dover, 2016.
SOLDAT-JAFFE, Tatjana. Zombie Linguistics. IN: COMENTALE, E. P.; JAFFE, A. (Eds.). The Year’s Work at the Zombie Research Center. Bloomington: Indiana University Press, 2014). p. 361-388.

FILMOGRAFIA

28 Days Later (Extermínio). Dirigido por Danny Boyle. Reino Unido: DNA Films, 2002 (113 min.).

ARMY of the Dead. Dirigido por Zack Snyder. Estados Unidos: Netflix, 2021 (148 min.)

BUSANHAENG (Invasão Zumbi). Dirigido por: Yeon Sang-ho. Coréia do Sul: Next Entertainment World, 2016 (118 min.).

CARGO (Cargo). Dirigido por Ben Howling, Yolanda Ramke. Austrália: Umbrella Entertainment, 2017 (105 min.)

DAWN of the Dead (Madrugada dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Laurel Group, 1978 (127 min.).

DAWN of the Dead (Madrugada dos Mortos). Dirigido por Zack Snyder. Estados Unidos: Strike Entertainment. 2004 (100 min.).

DAY of the Dead (O Dia dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Dead Film Inc, 1985 (100 min.).

LAND of the Dead (Terra dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Atmosphere Entertainment MM, 2005 (97 min.).

MAGGIE. Dirigido por Henry Hobson. Estados Unidos, Suiça: Lionsgate Films, 2015 (95 min.).

NIGHT of the Living Dead (Noite dos Mortos Vivos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Image Ten, 1968 (96 min.).

PONTYPOOL. Dirigido por Bruce McDonald. Canadá: Maple Pictures, 2008 (95 min.).

RE-Animator (Re-animator: a hora dos mortos vivos). Dirigido por Stuart Gordon. Estados Unidos: Empire International Pictures, 1985 (86 min.).

RETURN of the Living Dead (A Volta dos Mortos Vivos). Dirigido por Dan O’Bannon. Estados Unidos: Hemdale Film Corporation, 1985 (91 min.).

SHAUN of the Dead (Todo mundo quase morto). Dirigido por Edgar Wright. Estados Unidos: StudioCanal; WT² Productions; Big Talk Productions, 2004 (99 min.).

THE Ghost Breakers (O Castelo Sinistro). Dirigido por George Marshall. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1940 (83 min.).

THE Girl with All the Gifts (Melanie: a última esperança). Dirigido por Colm McCarthy. Grã-Bretanha: Warner Bros. Pictures, 2016 (111 min.).

THE Walking Dead [Seriado]. Produzido por Jolly Dale, Caleb Womble, Paul Gadd e Heather Bellson. Estados Unidos: AMC Studios, 2010.

WHITE Zombie (Zumbi Branco). Dirigido por Victor Halperin. Estados Unidos: Halperin Productions, 1932 (69 min.)

ZOMBIELAND (Zumbilândia). Dirigido por Ruben Fleischer. Estados Unidos: Relativity Media, 2009 (88 min.)

*Stefany Stettler, graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, estuda zumbis cinematográficos e suas relações com o Colonialismo, Antropoceno e Filosofia Moderna desde 2019. E-mail: stefany.sohn@gmail.com.