Felipe Alan*

O “Body Horror” é uma das rotas mais amplas em possibilidades para as mentes de cineastas, roteiristas, autores e ilustradores. Há uma verdadeira infinidade de maneiras de explorar o corpo humano, animal ou monstruoso, e tirar desse corpo tudo aquilo que ele pode oferecer quando o objetivo é despertar sentimentos de pavor, estranhamento, desconforto e medo no público, seja o mesmo fã ou não da temática.
Trabalhar com o horror corporal implica em desenvolver situações nas quais o corpo é o veículo que irá desencadear sensações. E é por conta dessa premissa inicial que se torna quase impossível não lidar com as possibilidades de trabalho de gênero e erotização que existem dentro desse terreno, se voltando para o despertar da sexualidade, a construção do desejo e o reconhecimento das inseguranças, bem como para a rejeição de tudo isso.

Em anos recentes é fácil identificar alguns exemplares de horror corporal que têm se destacado no panorama do cinema de horror por abraçarem por completo o propósito de debater gênero e sexo, como o Titane de Julia Ducournau, que aborda papéis de gênero, expressão social da masculinidade, a maternidade monstruosa e a fragilidade de um instinto assassino crescente vindo de uma personagem queer que nunca deixa de ser nosso foco – mesmo em seus piores momentos, cometendo as piores ações.

O Titane por si só é capaz de despontar aos holofotes, entre outras justificativas, por levar adiante as bordas do horror corporal, tal qual outras criações de cineastas têm feito a partir de uma ótica renovada e muito mais ciente do papel que personas queer desempenham ao existirem em nosso mundo.

Contudo, não haveria evolução do subgênero para que ele chegasse até onde está se não fosse a existência de precedentes que empurraram para além os limites que estavam impostos no tratamento da temática sexual, de expressão de gênero e identidade social. É o caso do Crash – Estranhos Prazeres de David Cronenberg, um irmão antecessor do Titane dirigido pelo nome mais famoso e influente no campo do horror corporal.
Embora a filmografia do cineasta tenha um número considerável de títulos que são mais e menos conhecidos, os fãs de Cronenberg raramente chegam a um consenso sobre qual o melhor filme do diretor. No meu caso, é o Crash.

Nem sempre um filme que se propõe a trabalhar fetiche consegue embarcar tão fundo em sua ideia, mas aqui os estranhos prazeres são um pano de fundo para discutir consenso, sexualidade casual, poligamia e a associação do prazer com máquinas – Novamente, com veículos. Crash faz tudo isso e consegue sozinho influenciar o Titane da Ducournau, o álbum homônimo CRASH da Charli XCX e a mim, em vários textos.
Para um público que foi acostumado a subestimar a potência do horror enquanto um meio de criação que extravasa na apresentação de qualquer tópico, revisitar o cinema de Cronenberg e explorar os herdeiros diretos pode ser uma grande oportunidade de revisar suas próprias noções sobre sexualidade e identidade. Por esses e outros motivos é ótimo se voltar para Hellraiser em 2022 – e provavelmente ainda será durante muitos anos.

Criado por Clive Barker, sendo ele responsável pela direção, roteirização e produção do filme baseado em seu próprio livro, The Hellbound Heart, Hellraiser é um filme de 1987 que foi lançado na reta final da década marcada pelo consumo de massa de grandes franquias do cinema de horror, como A Hora do Pesadelo, Halloween e Sexta Feira 13.

Esse lançamento tão próximo de sagas emblemáticas muitas vezes forma uma primeira impressão de que Hellraiser é mais um slasher oitentista sanguinário com um assassino reconhecível em destaque que irá matar suas vítimas de maneira criativa com uma arma inusitada e única, no entanto logo essa ideia vai embora ao sermos sugados ao universo dos Cenobitas encabeçados por Pinhead, conforme foram imaginados por Barker.

Nosso primeiro personagem no filme se chama Frank Cotton, um homem em busca de novas formas para explorar e saciar seu prazer inesgotável que cruza o caminho com um cubo conhecido como Configuração do Lamento. Uma vez que o Frank entra em contato com o artefato, tudo aquilo que ele sentia que já experimentou em todo tipo de performance sexual possível realizada a si parece minúsculo posto ao lado das ações dos Cenobitas, que surgem assim que ele desvenda a configuração da caixa e dilaceram seu corpo de forma rápida, visceral e frenética.

A ambição de experienciar um desejo sexual absoluto de Frank é a nossa introdução em Hellraiser e também marca a primeira morte em tela, porém o personagem nunca desaparece do filme já que sua presença está – literalmente – entranhada nas paredes, no chão de madeira, no forro, nas colunas, nas rachaduras e nos arredores da casa onde o casal Larry e Julia decide ir morar algum tempo depois do ocorrido.
O sentimento de estar indo assistir um slasher desaparece assim que a câmera do Clive Barker nos desvia para um casarão, fazendo com que Hellraiser não seja um filme de banho de sangue aos moldes tradicionais de retalhamento da década, mas sim um horror de casa mal assombrada onde cada canto mal iluminado – com brechas apenas para a entrada da luz solar – esconde uma ameaça iminente e latente para os personagens que acompanhamos, que por sua vez não são as figuras mais carismáticas e empáticas que já vimos.

Julia é o nosso rosto central de Hellraiser por pelo menos 90% da sua primeira metade, sendo apresentada como uma mulher ranzinza bastante incomodada com os rumos de seu casamento e infeliz com a mudança para a nova residência, a presença da filha de seu marido e com sua monótona vida sexual – ou melhor, monótona desde que conheceu Frank nas vésperas do casamento com Larry, com o qual ela traiu seu marido, transando com o irmão mais novo, sedutor e mais disposto a explorar o sexo com paixão e tesão.
Na segunda metade o tempo de tela se volta mais para Kirsty, nosso maior referencial humano de Hellraiser. Filha de Larry, ela conta com todos as características do arquétipo de uma final girl de slasher, embora aqui seu papel seja encontrar uma maneira de deter antagonistas movidos pela sede de prazer – seja ele mais egocentrado ou mais submisso e dependente do desejo sexual alheio.

Ao contrário das expectativas, a maior ameaça de Hellraiser nunca é a Configuração do Lamento, o Pinhead ou seus fiéis escudeiros Cenobitas. Todos esses elementos e criaturas são um detalhe particular da mente do Clive Barker usados para ampliar as possibilidades de sua trama. O real antagonismo parte do casal Julia e Frank, agindo em conjunto para tentar reconstituir o corpo humano dilacerado na trajetória pelo prazer sem medida desejado por esse último.

Hellraiser não é um filme obscuro que jamais encontrou seu espaço dentro do cinema de horror e sequer passou batido pelo público na década em que foi lançado. Entretanto, há coisas menos divulgadas sobre ele quando nos deparamos com o filme a partir de uma certa idade, em especial depois da descoberta de uma identidade queer e do reconhecimento da mesma, e principalmente de acordo com o espaço temporal da nossa sociedade.

A aparição das criaturas vestindo adereços de couro, portando correntes, spikes, aparências monstruosas que indicam vestígios de práticas sexuais masoquistas e um conjunto de características comportamentais que se baseiam na importância de firmar acordos, combinar burocracias de ambos os lados e respeitá-las com rigor é uma herança queer fundamental de tudo aquilo que o Clive Barker conheceu e frequentou em sua vida pessoal, sendo gay, frequentando espaços inseridos na cultura leather e BDSM e trabalhando como um garoto de programa.

Ao lado disso estão destacados pela narrativa de acontecimentos os personagens humanos, que nunca são escritos como sendo multissexuais, mas que estão buscando realizar suas explorações sexuais de maneiras que rompem com as regulamentações dadas para corpos humanos. É tudo um grande exercício de realização pessoal que cada personagem busca concretizar no filme, sem se amarrar às bases do que define heterossexualidade, cisgeneridade e normatividade. Mais queer, impossível.

Conforme a franquia cresceu, foi natural ela se distanciar da visão original do Clive Barker para as figuras presentes naquele universo e se higienizar radicalmente. Acaba que, de fato a trupe do Pinhead, bem como ele próprio, se tornaram mais ativos em matança e splatter. Porém aqui, no começo de tudo, eles não são mais do que um grupo seleto de indivíduos trajados e atuantes conforme pede o formulário.

Os diálogos, os acordos e as práticas de tortura realizadas pelos Cenobitas são instrumentados em relações de dominância e submissão do sadomasoquismo. Eles nunca adentram um recinto sem serem convidados e sob hipótese alguma realizam seus rituais de infinitos prazeres antes de cada indivíduo entender em qual terreno ele quer entrar, afinal a burocracia sempre vem em primeiro lugar.

É essa dualidade entre a crueldade monstruosa realizada com naturalidade pelos Cebonitas e a ação pragmática na execução das práticas que tornam o Pinhead e seus companheiros tão chamativos, destacáveis e amplos em representação de identidades marginalizadas mesmo contando com cerca de 10 minutos de tempo de tela em toda a duração de Hellraiser.

São também essas as características que os produtores que passaram por Hellraiser jamais compreenderam com a mesma propriedade do Clive Barker – ele enquanto uma pessoa queer sabe trabalhar monstros não como algo desconhecido, mas sim como algo semelhante a todos que se distanciam da identidade social e da sexualidade indicadas como convencionais a serem seguidas.

Nem sempre o horror e as mentes criativas por trás dele são generosos com pessoas queer e suas amplas identidades enquanto seres humanos, mas o horror corporal pode ser entendido como o molde temático que melhor suporta questões relacionadas a ser e se reconhecer como algo que não está inserido nas regras da sociedade vigente.

O papel do horror corporal é avançar pisando o pé no acelerador em um ritmo próprio que permite aos criadores fazer com que cada espectador questione sua própria relação com o medo, o pertencimento, as inseguranças, a repulsa e as dúvidas a respeito do que seu corpo pode fazer, se sexualizando, se expressando, se doando para outros corpos ou existindo em sociedade, suscetível a todos os tipos de leituras, julgamentos, violências e prazeres que podem se relacionar com ele.

Hellraiser é uma síntese de todo esse processo, um exemplar com o qual eu me relaciono e me enxergo, identificando muitas das minhas próprias práticas enquanto um indivíduo queer inseridas ali dentro. Assim como ele também é um produto com o qual cada corpo irá se entender de uma forma particular após assisti-lo. Contudo, ele sempre será mais interessante quando mantido no terreno do marginal, sem assimilação ou necessidade de abandonar o ambiente queer atrelado ao horror.

*Olá, eu sou o Fefa. Escritor, redator e fã de cultura pop e horror, tenho um carinho mais que especial por slashers, final girls, filmes em Technicolor, trilhas sonoras oitentistas, protagonistas de coming-of-age e personagens cobertos de sangue no audiovisual.

Sou criador do Horror Pop FLAC e escrevo sobre representação e identidade queer no cinema de horror desde 2021. Vocês podem me encontrar em quase todo canto da internet como @fefaalan e seguir meu site tanto no Twitter quanto no Instagram em @horrorpopflac.