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A REPRESENTAÇÃO DE BARBARA EM NIGHT OF THE LIVING DEAD, ORIGINAL (1968) E REMAKE (1990)

Stefany Sohn Stettler*

“Você me disse para lutar, e é isso que estou fazendo. Não estou entrando em pânico” (NIGHT…, 1990, tradução minha). É assim que a protagonista feminina Barbara responde Ben no remake de 1990 de Night of the Living Dead, dirigido por Tom Savini e roteirizado por George A. Romero. Este comportamento decidido da personagem define uma das duas principais diferenças entre o original e o remake. O desfecho do filme, que no original tem fortes conotações raciais, e que no remake se suaviza, é a segunda principal mudança nos 22 anos que separam os dois longa-metragens.

A incisividade de Barbara aparece já nos minutos iniciais do filme de 1990, quando ela briga com seu irmão de forma mais agressiva e o xinga: “bastard!”. Seu figurino também expressa esta nova caracterização da personagem: em 1968, um vestidinho curto, um sapato de salto médio e um sobretudo claro, delicadamente amarrado para destacar sua cintura; em 1990, uma saia rodada longa, uma camisa folgada, abotoada até o pescoço e finalizada com um laço, um suéter de tricô e uma sapatilha, que durante o filme foram substituídos por uma calça militar e coturnos de combate, pela iniciativa da própria Barbara. Uma troca de roupas suave acontece também em 1968, quando Ben encontra sapatos e os calça em Barbara, que está em estado semi-catatônico, porém o remake dá um sentido ao figurino que em 1968 não existe, a não ser para reforçar a incapacidade da personagem.

Os cortes de cabelo, embora também expressões da moda nas épocas dos filmes, têm significado: a Barbara de 1968 tem cabelos loiros de comprimento médio, presos elegantemente com uma faixa e um pequeno volume no topo da cabeça. Este estilo de cabelo, usado nos anos 1960 por mulheres como Raquel Welch, Jane Fonda e Brigitte Bardot, carrega a conotação de feminilidade. Já a Barbara de 1990 tem cabelos ruivos pixie, uma marca dos anos 1960 que estava sendo retomada no final dos anos 1980, o que também representa de forma competente o remake, um filme que retoma um clássico da mesma época. Além disso, a Barbara de 1990 usa óculos, que frequentemente representam inteligência. Vale pontuar que a personagem é a única que utiliza óculos no longa-metragem e a única que sobrevive à noite.

Quando a personagem é atacada pelo primeiro zumbi, em 68, ela clama por seu irmão, que corre para socorrê-la; em 90, ela também luta contra o morto-vivo e o ataca com um adereço destinado ao túmulo que estava visitando. A Barbara de 1968 não é capaz de defender-se quando um zumbi invade a casa no primeiro ato do filme, enquanto ela se lamenta dramaticamente pela morte de seu irmão. A kill count de Barbara de 1990 é de nove zumbis e Henry, que nesta interpretação, é o real vilão do filme. Esse número representa 25% de todas as mortes do filme. É ela que, entre a disputa territorialista de Ben e Henry, um defendendo o porão e outro o primeiro andar da casa, oferece a verdadeira saída:

BARBARA: Eles são tão devagares. Poderíamos simplesmente passar por eles, nem precisaríamos correr. Poderíamos simplesmente passar por eles. Temos as armas, se formos cuidadosos, podemos escapar. Você me disse para lutar, e é isso que estou fazendo. Não estou entrando em pânico. Este lugar não é seguro, nem no andar de cima nem no de baixo. Devemos partir antes que seja tarde demais (NIGHT…, 1990, tradução minha).

No processo de selar a casa com madeiras nas portas e janelas, um zumbi consegue forçar uma das entradas que não estavam presas, os sobreviventes Ben, Judy e Barbara tentam empurrá-lo para fora sem sucesso. Ben então solta a madeira com a qual tentavam expulsar o zumbi e este cai no chão da casa. Judy grita para não atirarem, pois era um vizinho dela. Barbara saca a espingarda e atira na cabeça do morto-vivo e Judy, aos gritos de pânico, acusa a atiradora de matar alguém que ela conhecia. Em seguida um novo zumbi invade pelo mesmo espaço deixado pelo agora cadáver na sala. Barbara dispara três tiros no torso do zumbi, perguntando a cada vez “ele está morto?”.

BEN: Pare com isso. Você está ficando louca, garota. Está perdendo a cabeça!

BARBARA: Você acha mesmo? [atira na cabeça do zumbi] Tudo o que perdi, perdi há muito tempo e não planejo perder mais nada. Você pode falar comigo sobre perder a cabeça quando vocês pararem de gritar um com o outro como um bando de crianças de dois anos (NIGHT…, 1990, tradução minha).

A Barbara de 68, completamente em choque, mal se move, mal fala e quando fala, para explicar como havia chegado na casa, seu discurso é errático e envolve detalhes irrelevantes:

BARBARA: Estávamos andando pelo cemitério. Johnny e eu. Johnny… Nós… nós viemos colocar uma coroa no túmulo do meu pai. Johnny e… e ele disse, “Posso pegar um doce, Barbara?”. E nós não tínhamos nenhum. E… Ah, está quente aqui. Quente… E ele disse, “Ah, está tarde, por que começamos tão tarde?”. E eu disse “Johnny, se você tivesse acordado mais cedo, não estaríamos atrasados”. Johnny me perguntou se eu estava com medo. E eu disse “Não estou com medo, Johnny”. E então esse homem começou a caminhar pela estrada. Ele veio lentamente, e Johnny ficava me provocando e dizendo, “Ele está vindo te pegar, Barbara”. E eu ri dele e disse, “Johnny, pare com isso”. E então Johnny saiu correndo. E eu fui até esse homem, e eu ia pedir desculpas, E eu olhei para cima, e disse “Boa noi…” E ele me agarrou! Ele me agarrou! E ele rasgou minha roupa! Ele me segurou e rasgou Minhas roupas! (NIGHT…, 1968, tradução minha).

Seu final original é trágico: ao avistar o agora zumbi Johnny invadindo a casa, já no terceiro ato do filme original, Barbara corre para abraçá-lo e assim, é levada para fora pelo seu irmão zumbificado e outros zumbis. No remake de 1990, ela é a única sobrevivente. Em Men, Women and Chainsaws: Gender in the Modern Horror Film (1992), Carol J. Clover cunhou o conceito da Final Girl: inicialmente um conceito dos filmes do tipo slasher, nos quais a última e única sobrevivente é uma mulher que confronta o vilão e pode ou matá-lo, ou ser salva por outro personagem “de fora” – um policial, por exemplo. Neste sentido, Barbara é uma final girl, apesar de Night of the Living Dead não ser um slasher, mas, de acordo com Romero, um splatter. A última e única sobrevivente, salva por outro grupo e que, ao voltar à casa que deixou no final da noite, descobre Harry ferido, mas vivo, no segundo andar da casa – não sem antes de se deparar com um Ben zumbificado – e o mata com um tiro à queima-roupa na cabeça, segundos antes dos seus colegas sobreviventes a encontrarem e ouvirem: “Tem mais um para a fogueira” (NIGHT…, 1990, tradução minha).

O remake de 1990 foi dirigido por Tom Savini, ator, dublê, diretor, maquiador e parceiro de longa data de Romero em projetos como Dawn of the Dead (1978), Creepshow (1982), Day of the Dead (1985) e Monkey Shines (1988). O roteiro do original, escrito por Romero e John Russo foi revisitado e reescrito pelo próprio Romero, além de Russo ter participado da produção do remake. Isto o torna um remake muito mais competente, se comparado com Dawn of the Dead (2004), de Zack Snyder, mas também muito mais interessante, pois levanta a pergunta: “por que Romero quis reescrever Night of the Living Dead, visto que o filme foi um sucesso de bilheteria – rendeu 30 milhões de dólares, apesar de ter sido produzido com apenas 115 mil dólares – e se tornou um clássico quase instantaneamente?”. Barry Grant (2015, p. 230, tradução minha) busca responder esta questão:

A visão cínica seria que o diretor está explorando seu próprio passado de sucesso, alimentando-se de si mesmo como uma variação irônica de suas próprias criaturas horríveis, em uma tentativa calculada de fortalecer uma carreira em declínio. […] Mas assim como certos autores retornaram aos seus mundos fictícios e, ao longo do tempo, aprofundaram seus personagens e temas […] aqui Romero retorna à sua narrativa original de zumbis e cria uma visão politicamente progressista mais do que no original, especialmente em termos das questões feministas levantadas pela influência do primeiro “A Noite dos Mortos-Vivos” no desenvolvimento subsequente do gênero.

A nova versão, surpreendentemente menos gore que sua original, foca mais nas relações pessoais: o tempo dedicado para as notícias de TV ou rádio diminui, a relação entre o casal Harry e Helen se intensifica, dessa vez incluindo agressão física e Barry Grant (2015) ainda afirma que a tensão racial entre Ben e Harry fica mais explícita, mas eu discordo. Dado o contexto histórico dos dois filmes, a cena contida no original na qual Ben agride Harry, que cai, apenas para levantá-lo e agredí-lo novamente, além do trágico final de Ben no filme de 1968, no qual sobrevive a noite apenas para ser morto por uma milícia de rednecks, tornam o filme original muito mais carregado de tensão racial que o remake.

A segunda onda feminista, localizada entre as décadas de 1960 e 1980, foi um movimento de mulheres – em princípio, brancas – que protestavam contra a a reinscrição da mulher no cenário doméstico após a Segunda Guerra Mundial, contra a desigualdade salarial, pelos direitos reprodutivos e, o mais importante para o meu argumento, contra a representação da mulher na mídia, que era caracterizada como passiva, irracional e emocionalmente vulnerável, exatamente como a Barbara de 1968. A Judy do original também age de forma impulsiva – ou seja, irracional – quando Tom e Ben saem em busca de gasolina, quase custando a vida de Ben. Considerando que um dos livros mais memoráveis da Segunda Onda, A Mística Feminina, de Betty Friedan, foi publicado em 1963, a Barbara de Night of the Living Dead original já deveria ter sido representada de outra forma. 

Laura Mulvey escreve, na crista da Segunda Onda Feminist, o texto Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975 [1989]), no qual analisa a posição da mulher no cinema a partir de uma perspectiva psicanalítica:

A imagem das mulheres como material (passivo) para o olhar (ativo) do homem leva o argumento a um passo adiante na estrutura da representação, adicionando mais uma camada exigida pela ideologia da ordem patriarcal, conforme é trabalhada em sua forma cinematográfica favorita – o filme narrativo ilusionista (MULVEY, 1989, p. 25, tradução minha).

Para a autora, a representação da mulher no cinema significa castração, e por isso sua imagem precisa passar por certos filtros que amenizam esta ameaça para uma audiência masculina, especialmente um tratamento no qual a mulher é objetificada e fetichizada, controlada e punida, de forma que o risco de sua exposição possa ser transformado em prazer por uma audiência patriarcal. Em From Reference to Rape (1974 [2016]), Molly Haskell afirma que a década de 1960 no cinema foi uma retaliação pelo crescente poder do movimento feminista:

Do ponto de vista das mulheres, os dez anos a partir, digamos, de 1962 ou 1963 até 1973 foram os mais desanimadores na história do cinema. Nos papéis e na visibilidade concedida às mulheres, a década começou de forma pouco promissora, piorou constantemente e, atualmente, não mostra sinais de melhora (HASKELL, 2016, não p., tradução minha).

Para a autora, o colapso do sistema de “estrelas” da indústria cinematográfica tirou o poder das mãos das atrizes e o colocou nas mãos dos diretores, que desenhavam papéis, em sua maioria, degradantes: “Prostitutas, quase prostitutas, amantes abandonadas, emocionalmente perturbadas, alcoólatras. Ingênuas doidinhas, Lolitas, malucas, solteironas famintas por sexo, psicóticas. Icebergs, zumbis e dominadoras” (HASKELL, 2016, não p., tradução minha).

Intencionalmente ou não, Romero fez uso desta mudança estrutural cinematográfica: conseguiu seu prestígio como diretor, que não muito antes pertencia às estrelas dos filmes e, pelo menos em Night of the Living Dead (1968) – ainda que nas sequências Dawn of the Dead (1978) e Day of the Dead (1985) tenha produzido filmes com papéis femininos menos estereotipados –, suas personagens femininas são decepcionantes. Barbara, a mocinha inocente irracional e semi-catatônica; Judy, a amante dedicada que para seguir seu homem, quase custa a vida de outro e; Helen, a pobre esposa submetida à tirania do marido.

No remake, contudo, Romero aproveita a oportunidade de catapultar ainda mais seu prestígio, ao mesmo tempo que corrige os erros do passado: as alterações feitas no roteiro criticam com mais força a territorialização e a disputa entre homens, criticando a masculinidade irracional, além de dar mais autonomia à Helen, que desobedece o marido para procurar as chaves da bomba de gasolina; dá à Judy uma reescrita mais digna da cena da bomba de gasolina e; transforma Barbara em uma badass, que tem agência, racionalidade e recusa a tomar lado nas disputas de Harry e Ben, escolhendo seu próprio caminho e sendo a única bem sucedida, uma final girl do splatter.

REFERÊNCIAS

CLOVER, Carol J. Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film. Nova Iorque: Princeton University Press, 2016.

CREEPSHOW. Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: United Film Distribution Company, Laurel Show, Inc., 1982 (120 min.).

DAWN of the Dead (Despertar dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Laurel Group, 1978 (127 min.).

DAWN of the Dead (Madrugada dos Mortos). Dirigido por Zack Snyder. Estados Unidos: Strike Entertainment. 2004 (100 min.).

DAY of the Dead (O Dia dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Dead Film Inc, 1985 (100 min.).

FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Trad. Carla Bitelli, Flávia Yacubian. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.

GRANT, Barry Keith. Taking Back the Night of the Living Dead: George Romero, Feminism, and the Horror Film. IN: GRANT, B. K. (Ed.) The dread of Difference: Gender and the Horror Film. Austin: University of Texas Press, 2015.

HASKELL, Molly. From Reverence to Rape: The Treatment of Women in the Movies. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2016.

MONKEY Shines. Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Orion Pictures, 1988 (113 min.).

MULVEY, Laura. Visual pleasure and narrative cinema. IN: MULVEY, L. Visual and other pleasures. Londres: Palgrave Macmillan UK, 1989. p. 14-26.

NIGHT of the Living Dead (Noite dos Mortos Vivos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Image Ten, 1968 (96 min.).

NIGHT of the Living Dead (Noite dos Mortos Vivos). Dirigido por Tom Savini. Estados Unidos: 21st Century Film Corporation, Menahem Golan Productions, 1990 (88 min.).

*Stefany S. Stettler é bacharela e licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, pesquisa sobre cinema de zumbis desde 2019 e possui um zine publicado pela N-1 Edições


Sugestão e exposição: as diferenças temáticas e narrativas entre as duas versões de Cat People

Daniel Medeiros*

Resumo: O objetivo desse artigo é observar as semelhanças e as diferenças entre as duas versões de Cat People, identificando o contexto em que cada obra foi produzida e como tais similaridades e diferenças se relacionam com as temáticas pertinentes à época das suas produções.

Introdução – partindo do mesmo ponto

Lançado em 1942, Cat People, ou Sangue de Pantera como ficou conhecido no Brasil, é uma produção de terror dirigida por Jacques Tourneur e produzida por Val Lewton. Já o seu remake chegou aos cinemas 40 anos depois, com o título nacional A Marca da Pantera e direção de Paul Schrader. Ambos os filmes partem da mesma premissa: uma jovem, virgem, chamada Irena se muda para a cidade grande. Lá, ela se apaixona e inicia um relacionamento com um homem chamado Oliver. Porém, ela teme que a consumação desse amor liberte uma antiga maldição do seu povo, fazendo-a se transformar em um enorme felino.

Existem diversos pontos de convergência entre as duas obras. Um deles é a presença de um zoológico que desempenha função essencial na narrativa. Há ainda a figura de uma mulher misteriosa, e de aparência felina, que se aproxima da protagonista em determinado momento e a chama de “irmã”. Além disso, sequências inteiras também são apresentadas de maneira idêntica, como o momento em que a amiga de Oliver, que claramente nutre um sentimento amoroso por ele, é perseguida através de ruas escuras pela esposa ciumenta.

Apesar das semelhanças, as duas obras são bastante distintas entre si, especialmente na maneira como abordam o tema do sexo

Direções opostas

Insinuações sexuais são frequentes em Sangue de Pantera. Desde o momento em que Irina convida Oliver para subir para seu apartamento (apenas para tomar um chá), passando pela cena em que os dois aparecem deitados, relaxados, apreciando o ar noturno (como se tivessem acabado de fazer amor), e culminando no desejo explicitado por Irena de “ser a Senhora Reed de verdade”, o filme movido por um desejo sexual nunca concretizado. Diante da sua impossibilidade de consumar o ato (afinal, um mero beijo já seria capaz de transformá-la em uma criatura sanguinária), Irena deixa que sua própria frustração sexual dê lugar ao sentimento de ciúmes. Ou seja, a ciúme se torna a sua força transformadora.

Já A Marca da Pantera é muito mais explícito. O filme é repleto de cenas de nudez e de sexo. A obra também muda algumas regras. Agora, o desejo sexual ou o ciúme não são suficientes para gerarem a transformação; apenas o ato sexual propriamente dito a causa. E para reverter a transformação, é preciso matar alguém, ou a pessoa ficará presa para sempre na sua forma animal.

Além da mudança no funcionamento da maldição, no remake Irena tem um irmão que também partilha do mesmo mal que a aflige. A presença desse irmão altera a dinâmica da história, visto que a transformação felina deixa de ser uma questão exclusivamente feminina para ser uma questão familiar. Já o tema da sexualidade ganha uma nova conotação de complexidade ao ser adicionada também a temática do incesto. Afinal, dentro dessas novas regras, a única maneira de as pessoas afligidas com esse mal poderem liberar seus desejos sexuais sem se transformarem é se fizerem sexo entre si.

Com isso, ficam evidentes as maiores diferenças entre as duas obras. Enquanto uma priorizava a sugestão, a outra é muito mais explícita. Enquanto em uma o desejo sexual é suficiente para causar a transformação, na outra é a satisfação desse desejo que causa a mudança. Ou seja, a repressão sexual, na década de 1940, não era suficiente para frear o avanço da ameaça, enquanto na década de 1980 essa mesma repressão é vista como a única salvação dos demais personagens.

Diante dessas diferenças, cabe analisarmos o contexto em que os filmes foram realizados.

O terror dos anos 1940 vs o terror dos anos 1980

Sangue de Pantera foi produzido numa época em que o cinema de terror não estava interessado em assustar. A guerra já causava medo suficiente. Não por acaso, os grandes monstros do estúdio Universal, que aterrorizaram toda uma geração na década anterior, perderam seu impacto e acabaram migrando para a comédia, em filmes como Às Voltas com Fantasmas (Bud Abbott and Lou Costello Meet Frankenstein, 1948). Havia, portanto, uma lacuna de produções de gênero que refletissem o lado mais sombrio da humanidade, em vez de ignorá-lo.

Essa lacuna foi preenchida pelo produtor Val Lewton, que assumiu a divisão de terror do estúdio RKO. Causando uma verdadeira revolução no gênero, o produtor realizou uma série de filmes extremamente influentes, como A Morta-Viva, O Homem-Leopardo e Sangue de Pantera. Em comum, essas obras se caracterizaram pela sua sugestividade. São filmes em que o terror não é explicitado, mas escondido. Filmes em que cabe ao espectador preencher as lacunas propositalmente deixadas pelos realizadores.

Não só isso, mas os filmes de Lewton costumavam abordar temas pouco explorados pelo gênero. Conforme mencionado antes, Sangue de Pantera é, em sua essência, um filme sobre repressão sexual e sobre como essa repressão se manifesta de maneira incontrolável. A verdadeira vítima, portanto, não é a pessoa atacada, mas aquela que é forçada a atacar por conta de uma condição que está além do seu controle.

O tema da repressão sexual só entrou em evidência nas décadas seguintes, principalmente por causa da revolução sexual, que atingiu seu ápice na década de 1960. Depois disso, o cinema se sentiu mais “à vontade” para tratar de temas que Val Lewton já abordara décadas atrás.

É fácil entender, portanto, porque A Marca da Pantera trata da temática sexual de maneira mais explícita. Não apenas o filme foi feito numa época em que sexo já havia deixado de ser um tema tabu (e passou a ser explorado extensamente pelo terror), mas ele foi produzido após o fim do Código Hays, um código de conduta que regeu Hollywood por mais de três décadas e que proibiu o uso de diversas temáticas, incluindo sexo e violência. Após o fim do Código, o cinema de terror ficou muito mais brutal e muito mais explícito. Aquilo que antes era apenas sugerido passou a escancarado para o espectador.

Conclusão – finais diferentes

As diferenças também são notáveis na maneira como cada filme encerra sua narrativa. Enquanto em Sangue de Pantera, a protagonista morre, em A Marca da Pantera ela fica para sempre presa na sua forma animal, domada dentro do zoológico onde seu namorado trabalha. Tais finais são significativos de maneiras distintas. Pois se a morte de Irena representa o resultado trágico de décadas de repressão sexual, seu aprisionamento no remake representa um alto grau de moralismo, pois mostra como a sociedade é incapaz de aceitar a liberdade sexual, e prefere, em vez disso, puni-la. A punição do sexo, por sinal, é um tema recorrente dentro do terror da década de 1980 (assassinos como Jason Voorhees, Michael Myers e Freddy Krueger tinham a tendência a priorizar jovens sexualmente ativas).

Esse talvez seja o maior ponto de divergência entre as duas obras. Enquanto o original foi contra as temáticas regentes na sua época, o remake navegou na onda da sua. Em outras palavras, Sangue de Pantera antecipou muitos dos temas que se tornaram vigentes depois, e A Marca da Pantera apenas refletiu o que já estava sendo feito. É por isso que A Marca da Pantera é um bom filme de terror, mas Sangue de Pantera é um verdadeiro clássico, um filme que, nas palavras de Martin Scorsese, foi “tão importante quanto Cidadão Kane para o desenvolvimento de um cinema americano mais maduro”.

*Daniel Medeiros é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e pesquisador sobre o cinema de terror. É graduado em Cinema e Vídeo, mestre e doutor em Ciências da Linguagem. Seu objeto de pesquisa é o cinema de terror contemporâneo.


Quatro estações: Os horrores da vida cotidiana, em oposição aos princípios liberdade

Diego Stevan Lopez* Muitas pessoas conhecem Stephen King por seus trabalhos mais voltados aos horrores dos  subgêneros clássicos, e é inegável que o escritor goza de talento, principalmente, quando o assunto  é entreter as massas sobre os mistérios e perigos de um mundo para além do conhecido e  cientificamente validado. Este ensaio, no entanto, vai…


Lidar com a morte e com o fim em “Conta comigo”

Ygor Pires Monteiro* Por muito tempo, Stephen King foi associado exclusivamente ao terror. Contos, romances e filmes pareciam vir apenas desse gênero. Títulos como “Carrie, a estranha”, “It: A coisa”, e “Cemitério” eram sempre resgatados para tentar justificar essa percepção. Tempos depois, a diversidade da obra do autor passou a ser mais reconhecida, tendo dramas…


Editorial #2

Stephen King é uma referencia para todas as pessoas que gostam de horror. Seja na literatura, onde sua obra é uma das mais extensas, seja no cinema que adaptou boa parte dos escritos. Deste modo, não poderíamos deixar de fazer uma edição da revista sobre este que talvez seja o maior nome do horror vivo….


Os sons do medo

Ligia H. Villon*

 

Eu poderia começar de muitas formas a falar sobre esse tema, mas como alguém que não é crítica e sim técnica de cinema eu vou começar com a chuva. Sim, a chuva. Você que está lendo agora este texto já reparou que nos filmes de terror os raios e os trovões caiem ao mesmo tempo? Mas, que na vida real isso não é possível porque existe um pequeno delay entre eles, afinal a velocidade da luz é mais rápida do que a do som? Não? Interessante.

Bem, isso ocorre porque é uma convenção entre nós de pós-produção de som, desde que o som começou a ser inserido aos filmes, que certos efeitos, como o som do trovão causam medo. O trovão é um som grave que é mixado nas caixas subwoofer, sons graves e que surgem do nada geram medo em mamíferos, ou seja, nós.

Bem, eu poderia então citar todas as cenas, de todos os filmes com chuva do Stephen King aqui, né? It – A Coisa, A Espera de Um Milagre, Cemitério Maldito, etc.. Mas seria sem graça, pois outras coisas que usamos para dar medo além dos efeitos são as trilhas sonoras e foleys.

Trilhas em filmes de terror podem ser extremamente marcantes, mas a maioria dos filmes do Stephen King não tem um tema forte, como por exemplo, Psicose. Deixo aqui duas exceções, as duas adaptações de “Chamas da Vingança” que tem as trilhas de autoria de John Carpenter e “Um sonho de liberdade” (1995) que concorreu ao Oscar nessa categoria.

Isso nos deixa com os foleys. Foleys tem esse nome em homenagem ao radialista que percebeu que faltava algo aos sons dos filmes, ele então adicionou as técnicas de radionovelas à pós-produção. Dentro dos foleys temos as munhas, que são todos os sons de algo que é tocado por mãos. Os sons de objetos em geral. E, o mais importante aqui os drones. São sons que estão entre efeitos e trilha e são muito usados e filmes de terror em geral. Todos os filmes de King tem alguma variação de drone.

E em IT – A Coisa (2017), toda a vez que o palhaço aparece um drone mixado com uma risada estrada aparece. Além disso, o filme utiliza muito o “efeito trovão”. Sons graves para te assustar quando você não está preparado.

O último aspecto que é o mestre do medo na edição de som é o não som. Sim, o silêncio. O silêncio assim como o trovão junto com o raio, não é natural, e tudo que não é natural, incomoda, gera desconforto, e dá medo.

Momentos silenciosos, aonde o som vai aos poucos ficando mais auto e terminam num pico muito agudo de um drone bem assustador normalmente significam que, ou mostro, ou fantasma, ou assassino está bem perto do protagonista esperando para dar o bote.

Esse efeito é exatamente o oposto do “efeito trovão”, pois você está avisando o seu expectador, vai acontecer algo ruim através do som. “Vai acontecer algo ruim, você não está vendo, o personagem não está vendo, mas você sabe mesmo assim”. É o efeito cauda escorpião do som. Próxima vez que assistir a um filme de terror feche os olhos e só escute e tente perceber, quando o será o próximo susto.

Um filme que trabalha muito com o silêncio até para mostrar o isolamento que os personagens se encontram é O Iluminado (1980). Na cena em que o Danny está andando de bicicleta enquanto o pai está na maquina de escrever quase não som apenas os da bicicleta e da máquina. A falta dos demais sons ambientes além de mostrar o isolamento gera desconforto, o que por sinal precede a ocorrência de fantasmas.

O silêncio também aparece na cena no filme Carrie, A Estranha (1976), logo depois que o balde de sangue cai em cima dela e os colegas começam a rir, não ouvimos os risos só vemos, apenas depois de ouvir a voz da mãe dela em sua memória é que ouvimos o som das risadas. Assim que o som volta vem à fúria Carrie, seguida por drones e efeitos bem agudos.

Eu falei do som quando muito, o “efeito trovão”, de o som completar, o drone, e do efeito do silêncio. Mas só isso é bastante para criar um ambiente sonoro de horror e terror? A resposta é não.  Existem ainda as três níveis de edição de som. Naturalistas, subjetivo e aditivo.

Naturalista, todos os filmes usam e significa trazer verossimilhança ao filme. Em filmes de terror o nível naturalista é deixado de lado ás vezes. Subjetivo, significa que você quer usar a sua edição de som para mostrar que está dentro da cabeça do personagem, como num sonho, lembrança, alucinação ou visão, por exemplo, a cena da Carrie no baile escutando a voz da mãe.

E por último, e talvez o mais importante, o aditivo, que significa 1+1=3. Em edição quando você coloca uma imagem ela tem um valor, adicione um som e ele sozinho tem outro valor, os dois juntos formaram um terceiro valor totalmente novo.

Um exemplo prático disso é IT – a Coisa, a figura palhaço tem um significado, você pode ter medo sim ou não, o mesmo serve para o balão vermelho, mas se eu adicionar um drone assustador para qualquer uma dessas imagens, aí sim terá o valor terror.

Para finalizar, eu vou falar da cena que talvez mais me marque com som de trovão em um filme de adaptação do autor: Um Sonho de Liberdade (1994). Que não é um filme de terror. Na cena da fuga, a construção da sequência é toda uma narração em voz off e a chuva, que aqui não dá medo, muito menos o trovão. Pois o personagem se utiliza justamente do delay entre raio e trovão para fazer o buraco no cano para sua liberdade. Mas existe uma tensão tão grande e tão bem construída, que só o cinema quebrando as regras da física é capaz de fazer. Depois que ele sai os raios e trovões caiem juntos, sempre longe, na prisão, e sobe a trilha. Ou seja, o maior monstro em todas as obras de Stephen King sempre serão as pessoas.

 

* Meu nome é Lígia Helena Villon, São Bernardo do Campo – SP, sou formada em Cinema Digital e animação. Sou cineasta, roteirista, quadrinista e escritora. Além disso, Coprodutora no coletivo independente Alguma Coisa Filmes, colaboradora do Coletivo Quadrinhos do Mundo e da página Mulheres Audiovisual, cineasta independente, dirigi 6 curtas e um média metragem. Possuo história publicada pela editora Skript no quadrinho Pândega com mais outros artistas que foi ilustrada por Mazure Moganashi entre outras colaborações.


Um passeio por Stephen King

Danielle Delaneli*

Um dos motivos para Stephen King fazer tanto sucesso é sua capacidade de transformar o que é sobrenatural em realidade, mesmo com o autor deixando claro que o horror é ficcional. Impressiona o fato de sua obra atravessar gerações e conseguir ser atual e relevante. Tal sucesso deve-se a sua habilidade de compreender a mente humana e propor uma reflexão sobre a complexidade dessa mente atormentada.

O horror é uma ferramenta usada por King para explorar outros aspectos emocionais dos personagens. Através de histórias intensas que exploram medos e angústias, cria-se uma identificação no leitor fazendo com que este leitor viaje por diferentes emoções dentro de uma mesma história.             

Com uma obra imagética não foi difícil atrair cineastas interessados em adaptar suas obras para o cinema. Com isso suas histórias tornaram-se mais conhecidas pelo grande público, o que o torna um sucesso literário e também cinematográfico.                                                   

Uma bibliografia de sucesso que tornou-se uma filmografia igualmente bem-sucedida inclui O Iluminado, It: A CoisaCarrie, Louca Obsessão, A Torre Negra, Christine, O Carro Assassino entre muitas outras obras que impactaram a cultura pop ao longo dos anos. Além desses e outras dezenas de romances, Stephen King é autor de centenas de contos de sucesso.

Com uma grande quantidade de adaptações de suas obras para as telonas, o sucesso de King foi aumentando. O que prova que a literatura é uma excelente porta de entrada para o cinema, e este, uma bela vitrine para obras literárias principalmente quando são de qualidade como as do autor.

Uma particularidade das obras de Stephen King é trazer o sobrenatural como acessório para abordar temas sociais.

Em O Iluminado, por exemplo, temos uma abordagem do alcoolismo que gera uma crise familiar. É uma obra sobre um bloqueio de autor que trata também da loucura. Jack Torrence é um homem que sonhava ser escritor mas é medíocre e acaba tornando-se frustrado e caindo no alcoolismo. Mais tarde passa a culpar a própria família por seu fracasso, isolando-se dentro do isolamento do hotel para tentar escrever.   Com o tempo passa a ter um comportamento abusivo e mergulha por vontade própria na loucura. E quanto mais percebe sua falta de talento, mais mergulha na loucura e se afasta da família. Tal atitude, que é uma escolha do personagem, somada ao sobrenatural acabam sendo gatilhos para a insanidade que podemos encarar como uma fuga da realidade. 

O perigo representado por Jack Torrence é também a alegoria de uma mente entrando em colapso, ou seja, quanto mais ameaçador ele fica, mais a mente se perde.

E se nessa obra temos o isolamento de um escritor frustrado e consumido pelo fracasso, em Misery temos uma leitora que vive isolada tendo como único sentido na vida acompanhar a trajetória de sua personagem favorita, que dá título à obra. 

A solitária Annie Wilkes tem em Misery uma fiel companheira até que, ao socorrer o criador de sua personagem favorita, tem uma grande decepção: ele pretende matá-la. A loucura de Annie, tal como a de Jack, vai crescendo, tomando conta dela e interferindo em sua vida. Aliás, no caso de Annie também é retratada a obsessão.

Enquanto em “O Iluminado” temos a impossibilidade de encarar a realidade na figura de Jack, em Misery temos a representação da obsessão que leva à loucura. Essa obsessão pode ser entendida como alegoria da busca excessiva pelo sonho americano a qualquer preço. Sonho que, no caso de Jack não foi alcançado, fazendo com que se enterrasse no isolamento. Obsessão que impede Annie de se despedir de uma personagem, representando a dificuldade que algumas pessoas têm de seguir em frente.

Até aqui vemos apenas questões da vida adulta. Porém, King também aborda a juventude em suas obras.

Em It – A Coisa vemos crianças abandonadas à própria sorte, visto que poucos adultos aparecem e, quando isso acontece, demonstram certa hostilidade. Ou seja, negligência e abuso. 

Em Christine, o Carro Assassino podemos acompanhar a relação do jovem com o primeiro carro. 

Em Carrie temos a representação de momentos importantes na vida de uma jovem como a primeira menstruação e o baile de formatura. 

Qual a relação entre as três histórias? Uma fase de experiências pessoais importantes para o crescimento e construção da autoestima. 

Carrie tem ainda em comum com O nevoeiro o fanatismo religioso que pode arruinar o amor-próprio de uma jovem ou tirar a vida de um inocente.

Há ainda a relação com a morte abordada em Cemitério maldito (O cemitério). Na verdade a não aceitação da perda, o processo de luto e como lidar com a dor são o grande conflito da história. 

Temas sociais não faltam, pois King sempre usa dramas pessoais para produzir medo.

 

*Danielle Delaneli é professora, atriz, escritora, roteirista e produtora. Formada em Letras pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Cinema e a linguagem audiovisual pelo Instituto Graduarte e em Jornalismo pela Faculdade Faveni.

Muito criativa, desde criança gosta muito de escrever. Tudo graças à sua mãe, responsável por suas maiores paixões: Literatura, Teatro e Cinema que hoje tornaram-se também seu trabalho, e seu pai que sempre a incentivou a estudar para alcançar seus objetivos.


O estigma cigano em Stephen King

Giovanna Venturini*

 

Considerado por muitos um dos grandes mestres do terror, Stephen King lançou seu livro Thinner (traduzido no Brasil como “A maldição do cigano”) em 1984 sob o pseudônimo de Richard Bachman. Na história, Bill Halleck é um advogado obeso que acidentalmente atropela e mata uma idosa cigana, mas que acaba saindo impune — graças à conivência do juiz e do chefe de polícia local. Quando Halleck sai do tribunal, um velho cigano de nariz carcomido toca seu rosto e diz: “mais magro”. A partir deste ponto, o advogado começa a perder peso vertiginosamente e de forma incontrolável. Assim, a trama acompanha Bill em sua corrida contra o tempo, buscando uma forma de encontrar o cigano e anular a maldição antes de emagrecer ao ponto de desaparecer completamente. Aqui cabe um aviso: este ensaio contém spoilers do livro.

Apesar de Thinner se tratar de uma obra de ficção, sua narrativa traz temas pertinentes que encontram ecos no mundo real: vingança, justiça, alteridade, estigma… são assuntos que se entrelaçam na trama, usando como fio condutor uma maldição. A escolha da identidade étnica dos personagens tampouco se dá por acaso: a própria ideia da maldição em questão — e de quem a realiza — está diretamente atrelada ao estereótipo enraizado de que o povo cigano (também chamado de Roma ou Romani) estaria ligado à feitiçaria. 

Contudo, esta é apenas uma das várias ideias preconcebidas a respeito do povo Roma que constituem o imaginário não-cigano (gadjé). No próprio livro em questão, esta não é a única manifestação do estigma cigano: em diversos momentos, King narra através de seus personagens uma história de marginalização envolvendo este povo — ilustrando como os ciganos são vistos ao mesmo tempo com temor e fascínio. 

De forma geral, a estigmatização do povo Romani costuma perpassar estas esferas: vivem à margem da sociedade e são vistos como ladrões, feiticeiros e boêmios, mas ao mesmo tempo compõem um imaginário ligado a mistério e liberdade. Essa presença dos ciganos na história e a forma como as tensões se apresentam entre grupos distintos nos permitem analisar Thinner sob a ótica do autor Erving Goffman, especialmente através do seu conceito de estigma.

Inicialmente, Goffman resume o conceito de estigma como “a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena” (GOFFMAN, 1980, p. 7). É interessante ressaltar o termo “situação” nessa definição para entendermos uma característica essencial do estigma: ele não é absoluto. Na teoria de Erving Goffman, trata-se de um atributo profundamente depreciativo, mas que só faz sentido se analisado dentro de um conjunto de relações. Assim, o estigma não existe no vácuo: se forma no encontro, no manejo da tensão entre os “normais” e os estigmatizados. 

Estas duas últimas categorias podem ser vistas na narrativa através da constante dualidade entre os “bons sujeitos” e aqueles que estão na margem — especialmente os ciganos. No começo da trama, Bill Halleck está firmemente ancorado do lado dos “normais”: o trabalho de advogado, sua família, seu círculo social, seus hábitos… tudo a respeito do personagem reforça que ele é parte dos “gente fina”. Ao receber a maldição de Taduz Lemke — o velho cigano —, Halleck enfrenta questões que vão além dos problemas físicos causados por seu emagrecimento descontrolado: não somente sua saúde fica comprometida, como sua presença esquelética passa a ser motivo de repulsa das pessoas “comuns”. 

Outro fator importante é o rechaço que o protagonista sofre de seu círculo imediato: toda vez que Bill confessa para sua família e amigos que acredita estar sumindo por ter sido amaldiçoado por um velho cigano, as pessoas ao seu redor acreditam que ele está louco. Assim, ao mesmo tempo em que seus quilos vão desaparecendo, Bill é arrancado de seu lugar de normalidade e colocado forçosamente à margem. 

Uma vez rechaçado por seus iguais, Bill Halleck se vê também como um estigmatizado; em seu estado de magreza extrema, se percebe como uma aberração de circo. E à medida em que busca saber mais sobre sua condição e sobre maneiras de impedir o próprio desaparecimento, o protagonista nota que a maldição de Taduz Lemke se trata de uma vingança feroz; uma forma de fazer justiça pela cigana atropelada — já que a “gente fina” sempre protege a si mesma e trata os ciganos como subalternos. 

A maldição de Lemke vem permeada de uma forte ideia de “gota d’água”; de um povo que sofreu todo tipo de discriminação e não espera encontrar justiça entre os “homens brancos da cidade”, como alguns ciganos se referem a Halleck e pessoas semelhantes no livro. O uso desta expressão na trama também é interessante: enquanto Bill e os “bons sujeitos” se consideram dentro da “norma” do mundo, a frase “homem branco da cidade” acaba colocando esta categoria de pessoa em um lugar de estranhamento, no qual há uma mudança de perspectiva — desta vez, o ponto de referência são os ciganos, e os “estranhos” são os gadjé.

Esta passagem encontra ecos nos estudos decoloniais, especialmente ao tratar do tema da alteridade: definir o outro é definir também a si mesmo, e o estabelecimento daquilo que é “normal” nunca se dá por acaso. Gayatri Spivak aponta como o projeto imperialista se ocupou de firmar o sujeito colonial como “o Outro”, ao mesmo tempo em que estabeleceu a perspectiva dos colonizadores como um ponto de vista totalizante-universalizante (SPIVAK, 2010). No microcosmo de Thinner, podemos levantar possibilidades a partir dessas categorias fundadas no imperialismo para pensar a subalternidade dos ciganos: enquanto Halleck percebe seu modo de vida ao início do livro como uma verdade absoluta, esta perspectiva vai se alterando à medida em que o conflito da trama se desloca para a margem. Inclusive, Bill só consegue começar a resolver sua maldição quando começa a de fato operar na margem: isto se materializa no personagem de Ginelli, o gângster italiano nova-iorquino que acaba por ser seu único aliado.

Para além do estereótipo comum associando ciganos à feitiçaria, King também explora outro lugar-comum ao tratar de uma figura específica: Gina Lemke, a jovem cigana armada com uma atiradeira. A todo momento, a beleza de Gina é ressaltada, assim como efeito que ela tem sobre os homens que encontra: ainda que sequer esteja pensando em seduzir os homens que encontra — na verdade, a emoção mais recorrente da personagem é a raiva —, toda aparição de Gina é traz a visão romântica de que ela é uma cigana misteriosa e voluptuosa, de que todos os homens ficam afetados por sua presença e sentem um enorme desejo por ela. 

O uso do termo “romântico” aqui é proposital: esta figura da cigana que instila desejo remonta ao Romantismo, especialmente à obra Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo — mais conhecida como O Corcunda de Notre-Dame. As passagens que remetem ao quão irresistível é Gina poderiam muito bem falar da própria Esmeralda, e compõem esse imaginário do povo Roma como uma gente exótica e ardente — mais um ponto dentro do eixo temor-fascínio que caracteriza o estigma cigano.

De acordo com os temas trabalhados em Thinner, Stephen King nos faz pensar em algumas questões: até onde uma vingança pode ir? O que ainda pode ser considerado como uma realidade absoluta perante os nossos encontros com o outro? Quando defino a mim mesmo como a norma, o que isso significa para aquele que é diferente? Por meio destas perguntas, o mestre do horror traça uma narrativa que vai além do conflito pessoal de Halleck e Lemke, englobando também os grupos aos quais pertencem. No fim das contas, vemos que maldições são, na verdade, ressentimentos. Se formos seguir a lógica de Thinner, podemos ainda pensar em como esses rancores podem escapar do nosso controle; ou mesmo em como essas maldições adquirem vida própria. 

Referências Bibliográficas

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

KING, Stephen. A maldição do cigano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

*Giovanna Venturini é mestranda em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde desenvolve pesquisa sobre o direito à educação do povo cigano. É também tanatóloga e pesquisadora na área da morte, vinculada ao LABÔ PUC-SP; nesta área, suas pesquisas se dividem entre patrimônio cemiterial e o impacto do tabu da morte na concepção de monstruosidade. Quando não está pesquisando e nem falando de defuntos, Giovanna é ilustradora, escritora e constante leitora de histórias de terror.


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Cleiton Lopes* Acredito que não é novidade pra ninguém que Stephen King não gostou nada do que Stanley Kubrick fez ao adaptar O Iluminado (1980) para as telas. Entretanto, a obra cinematográfica é uma pérola na história do cinema. É um título sempre presente nas mais diversas listas de melhores, sejam relacionadas ao terror ou…


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Junno Sena*   “Então você está com medo de ser?”, pergunta o personagem abertamente homossexual, Machen, para Garton, um homofóbico, em It: A Coisa, sugerindo que o rapaz que o assediou possa, também, ser gay. Existe uma brincadeira com o real palpável nessa cena. Talvez não impacte leitores heterossexuais, mas consegue levar qualquer pessoa LGBTQIA+…