Stefany Sohn Stettler*
“Você me disse para lutar, e é isso que estou fazendo. Não estou entrando em pânico” (NIGHT…, 1990, tradução minha). É assim que a protagonista feminina Barbara responde Ben no remake de 1990 de Night of the Living Dead, dirigido por Tom Savini e roteirizado por George A. Romero. Este comportamento decidido da personagem define uma das duas principais diferenças entre o original e o remake. O desfecho do filme, que no original tem fortes conotações raciais, e que no remake se suaviza, é a segunda principal mudança nos 22 anos que separam os dois longa-metragens.
A incisividade de Barbara aparece já nos minutos iniciais do filme de 1990, quando ela briga com seu irmão de forma mais agressiva e o xinga: “bastard!”. Seu figurino também expressa esta nova caracterização da personagem: em 1968, um vestidinho curto, um sapato de salto médio e um sobretudo claro, delicadamente amarrado para destacar sua cintura; em 1990, uma saia rodada longa, uma camisa folgada, abotoada até o pescoço e finalizada com um laço, um suéter de tricô e uma sapatilha, que durante o filme foram substituídos por uma calça militar e coturnos de combate, pela iniciativa da própria Barbara. Uma troca de roupas suave acontece também em 1968, quando Ben encontra sapatos e os calça em Barbara, que está em estado semi-catatônico, porém o remake dá um sentido ao figurino que em 1968 não existe, a não ser para reforçar a incapacidade da personagem.
Os cortes de cabelo, embora também expressões da moda nas épocas dos filmes, têm significado: a Barbara de 1968 tem cabelos loiros de comprimento médio, presos elegantemente com uma faixa e um pequeno volume no topo da cabeça. Este estilo de cabelo, usado nos anos 1960 por mulheres como Raquel Welch, Jane Fonda e Brigitte Bardot, carrega a conotação de feminilidade. Já a Barbara de 1990 tem cabelos ruivos pixie, uma marca dos anos 1960 que estava sendo retomada no final dos anos 1980, o que também representa de forma competente o remake, um filme que retoma um clássico da mesma época. Além disso, a Barbara de 1990 usa óculos, que frequentemente representam inteligência. Vale pontuar que a personagem é a única que utiliza óculos no longa-metragem e a única que sobrevive à noite.
Quando a personagem é atacada pelo primeiro zumbi, em 68, ela clama por seu irmão, que corre para socorrê-la; em 90, ela também luta contra o morto-vivo e o ataca com um adereço destinado ao túmulo que estava visitando. A Barbara de 1968 não é capaz de defender-se quando um zumbi invade a casa no primeiro ato do filme, enquanto ela se lamenta dramaticamente pela morte de seu irmão. A kill count de Barbara de 1990 é de nove zumbis e Henry, que nesta interpretação, é o real vilão do filme. Esse número representa 25% de todas as mortes do filme. É ela que, entre a disputa territorialista de Ben e Henry, um defendendo o porão e outro o primeiro andar da casa, oferece a verdadeira saída:
BARBARA: Eles são tão devagares. Poderíamos simplesmente passar por eles, nem precisaríamos correr. Poderíamos simplesmente passar por eles. Temos as armas, se formos cuidadosos, podemos escapar. Você me disse para lutar, e é isso que estou fazendo. Não estou entrando em pânico. Este lugar não é seguro, nem no andar de cima nem no de baixo. Devemos partir antes que seja tarde demais (NIGHT…, 1990, tradução minha).
No processo de selar a casa com madeiras nas portas e janelas, um zumbi consegue forçar uma das entradas que não estavam presas, os sobreviventes Ben, Judy e Barbara tentam empurrá-lo para fora sem sucesso. Ben então solta a madeira com a qual tentavam expulsar o zumbi e este cai no chão da casa. Judy grita para não atirarem, pois era um vizinho dela. Barbara saca a espingarda e atira na cabeça do morto-vivo e Judy, aos gritos de pânico, acusa a atiradora de matar alguém que ela conhecia. Em seguida um novo zumbi invade pelo mesmo espaço deixado pelo agora cadáver na sala. Barbara dispara três tiros no torso do zumbi, perguntando a cada vez “ele está morto?”.
BEN: Pare com isso. Você está ficando louca, garota. Está perdendo a cabeça!
BARBARA: Você acha mesmo? [atira na cabeça do zumbi] Tudo o que perdi, perdi há muito tempo e não planejo perder mais nada. Você pode falar comigo sobre perder a cabeça quando vocês pararem de gritar um com o outro como um bando de crianças de dois anos (NIGHT…, 1990, tradução minha).
A Barbara de 68, completamente em choque, mal se move, mal fala e quando fala, para explicar como havia chegado na casa, seu discurso é errático e envolve detalhes irrelevantes:
BARBARA: Estávamos andando pelo cemitério. Johnny e eu. Johnny… Nós… nós viemos colocar uma coroa no túmulo do meu pai. Johnny e… e ele disse, “Posso pegar um doce, Barbara?”. E nós não tínhamos nenhum. E… Ah, está quente aqui. Quente… E ele disse, “Ah, está tarde, por que começamos tão tarde?”. E eu disse “Johnny, se você tivesse acordado mais cedo, não estaríamos atrasados”. Johnny me perguntou se eu estava com medo. E eu disse “Não estou com medo, Johnny”. E então esse homem começou a caminhar pela estrada. Ele veio lentamente, e Johnny ficava me provocando e dizendo, “Ele está vindo te pegar, Barbara”. E eu ri dele e disse, “Johnny, pare com isso”. E então Johnny saiu correndo. E eu fui até esse homem, e eu ia pedir desculpas, E eu olhei para cima, e disse “Boa noi…” E ele me agarrou! Ele me agarrou! E ele rasgou minha roupa! Ele me segurou e rasgou Minhas roupas! (NIGHT…, 1968, tradução minha).
Seu final original é trágico: ao avistar o agora zumbi Johnny invadindo a casa, já no terceiro ato do filme original, Barbara corre para abraçá-lo e assim, é levada para fora pelo seu irmão zumbificado e outros zumbis. No remake de 1990, ela é a única sobrevivente. Em Men, Women and Chainsaws: Gender in the Modern Horror Film (1992), Carol J. Clover cunhou o conceito da Final Girl: inicialmente um conceito dos filmes do tipo slasher, nos quais a última e única sobrevivente é uma mulher que confronta o vilão e pode ou matá-lo, ou ser salva por outro personagem “de fora” – um policial, por exemplo. Neste sentido, Barbara é uma final girl, apesar de Night of the Living Dead não ser um slasher, mas, de acordo com Romero, um splatter. A última e única sobrevivente, salva por outro grupo e que, ao voltar à casa que deixou no final da noite, descobre Harry ferido, mas vivo, no segundo andar da casa – não sem antes de se deparar com um Ben zumbificado – e o mata com um tiro à queima-roupa na cabeça, segundos antes dos seus colegas sobreviventes a encontrarem e ouvirem: “Tem mais um para a fogueira” (NIGHT…, 1990, tradução minha).
O remake de 1990 foi dirigido por Tom Savini, ator, dublê, diretor, maquiador e parceiro de longa data de Romero em projetos como Dawn of the Dead (1978), Creepshow (1982), Day of the Dead (1985) e Monkey Shines (1988). O roteiro do original, escrito por Romero e John Russo foi revisitado e reescrito pelo próprio Romero, além de Russo ter participado da produção do remake. Isto o torna um remake muito mais competente, se comparado com Dawn of the Dead (2004), de Zack Snyder, mas também muito mais interessante, pois levanta a pergunta: “por que Romero quis reescrever Night of the Living Dead, visto que o filme foi um sucesso de bilheteria – rendeu 30 milhões de dólares, apesar de ter sido produzido com apenas 115 mil dólares – e se tornou um clássico quase instantaneamente?”. Barry Grant (2015, p. 230, tradução minha) busca responder esta questão:
A visão cínica seria que o diretor está explorando seu próprio passado de sucesso, alimentando-se de si mesmo como uma variação irônica de suas próprias criaturas horríveis, em uma tentativa calculada de fortalecer uma carreira em declínio. […] Mas assim como certos autores retornaram aos seus mundos fictícios e, ao longo do tempo, aprofundaram seus personagens e temas […] aqui Romero retorna à sua narrativa original de zumbis e cria uma visão politicamente progressista mais do que no original, especialmente em termos das questões feministas levantadas pela influência do primeiro “A Noite dos Mortos-Vivos” no desenvolvimento subsequente do gênero.
A nova versão, surpreendentemente menos gore que sua original, foca mais nas relações pessoais: o tempo dedicado para as notícias de TV ou rádio diminui, a relação entre o casal Harry e Helen se intensifica, dessa vez incluindo agressão física e Barry Grant (2015) ainda afirma que a tensão racial entre Ben e Harry fica mais explícita, mas eu discordo. Dado o contexto histórico dos dois filmes, a cena contida no original na qual Ben agride Harry, que cai, apenas para levantá-lo e agredí-lo novamente, além do trágico final de Ben no filme de 1968, no qual sobrevive a noite apenas para ser morto por uma milícia de rednecks, tornam o filme original muito mais carregado de tensão racial que o remake.
A segunda onda feminista, localizada entre as décadas de 1960 e 1980, foi um movimento de mulheres – em princípio, brancas – que protestavam contra a a reinscrição da mulher no cenário doméstico após a Segunda Guerra Mundial, contra a desigualdade salarial, pelos direitos reprodutivos e, o mais importante para o meu argumento, contra a representação da mulher na mídia, que era caracterizada como passiva, irracional e emocionalmente vulnerável, exatamente como a Barbara de 1968. A Judy do original também age de forma impulsiva – ou seja, irracional – quando Tom e Ben saem em busca de gasolina, quase custando a vida de Ben. Considerando que um dos livros mais memoráveis da Segunda Onda, A Mística Feminina, de Betty Friedan, foi publicado em 1963, a Barbara de Night of the Living Dead original já deveria ter sido representada de outra forma.
Laura Mulvey escreve, na crista da Segunda Onda Feminist, o texto Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975 [1989]), no qual analisa a posição da mulher no cinema a partir de uma perspectiva psicanalítica:
A imagem das mulheres como material (passivo) para o olhar (ativo) do homem leva o argumento a um passo adiante na estrutura da representação, adicionando mais uma camada exigida pela ideologia da ordem patriarcal, conforme é trabalhada em sua forma cinematográfica favorita – o filme narrativo ilusionista (MULVEY, 1989, p. 25, tradução minha).
Para a autora, a representação da mulher no cinema significa castração, e por isso sua imagem precisa passar por certos filtros que amenizam esta ameaça para uma audiência masculina, especialmente um tratamento no qual a mulher é objetificada e fetichizada, controlada e punida, de forma que o risco de sua exposição possa ser transformado em prazer por uma audiência patriarcal. Em From Reference to Rape (1974 [2016]), Molly Haskell afirma que a década de 1960 no cinema foi uma retaliação pelo crescente poder do movimento feminista:
Do ponto de vista das mulheres, os dez anos a partir, digamos, de 1962 ou 1963 até 1973 foram os mais desanimadores na história do cinema. Nos papéis e na visibilidade concedida às mulheres, a década começou de forma pouco promissora, piorou constantemente e, atualmente, não mostra sinais de melhora (HASKELL, 2016, não p., tradução minha).
Para a autora, o colapso do sistema de “estrelas” da indústria cinematográfica tirou o poder das mãos das atrizes e o colocou nas mãos dos diretores, que desenhavam papéis, em sua maioria, degradantes: “Prostitutas, quase prostitutas, amantes abandonadas, emocionalmente perturbadas, alcoólatras. Ingênuas doidinhas, Lolitas, malucas, solteironas famintas por sexo, psicóticas. Icebergs, zumbis e dominadoras” (HASKELL, 2016, não p., tradução minha).
Intencionalmente ou não, Romero fez uso desta mudança estrutural cinematográfica: conseguiu seu prestígio como diretor, que não muito antes pertencia às estrelas dos filmes e, pelo menos em Night of the Living Dead (1968) – ainda que nas sequências Dawn of the Dead (1978) e Day of the Dead (1985) tenha produzido filmes com papéis femininos menos estereotipados –, suas personagens femininas são decepcionantes. Barbara, a mocinha inocente irracional e semi-catatônica; Judy, a amante dedicada que para seguir seu homem, quase custa a vida de outro e; Helen, a pobre esposa submetida à tirania do marido.
No remake, contudo, Romero aproveita a oportunidade de catapultar ainda mais seu prestígio, ao mesmo tempo que corrige os erros do passado: as alterações feitas no roteiro criticam com mais força a territorialização e a disputa entre homens, criticando a masculinidade irracional, além de dar mais autonomia à Helen, que desobedece o marido para procurar as chaves da bomba de gasolina; dá à Judy uma reescrita mais digna da cena da bomba de gasolina e; transforma Barbara em uma badass, que tem agência, racionalidade e recusa a tomar lado nas disputas de Harry e Ben, escolhendo seu próprio caminho e sendo a única bem sucedida, uma final girl do splatter.
REFERÊNCIAS
CLOVER, Carol J. Men, Women, and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film. Nova Iorque: Princeton University Press, 2016.
CREEPSHOW. Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: United Film Distribution Company, Laurel Show, Inc., 1982 (120 min.).
DAWN of the Dead (Despertar dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Laurel Group, 1978 (127 min.).
DAWN of the Dead (Madrugada dos Mortos). Dirigido por Zack Snyder. Estados Unidos: Strike Entertainment. 2004 (100 min.).
DAY of the Dead (O Dia dos Mortos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Dead Film Inc, 1985 (100 min.).
FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Trad. Carla Bitelli, Flávia Yacubian. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.
GRANT, Barry Keith. Taking Back the Night of the Living Dead: George Romero, Feminism, and the Horror Film. IN: GRANT, B. K. (Ed.) The dread of Difference: Gender and the Horror Film. Austin: University of Texas Press, 2015.
HASKELL, Molly. From Reverence to Rape: The Treatment of Women in the Movies. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2016.
MONKEY Shines. Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Orion Pictures, 1988 (113 min.).
MULVEY, Laura. Visual pleasure and narrative cinema. IN: MULVEY, L. Visual and other pleasures. Londres: Palgrave Macmillan UK, 1989. p. 14-26.
NIGHT of the Living Dead (Noite dos Mortos Vivos). Dirigido por George A. Romero. Estados Unidos: Image Ten, 1968 (96 min.).
NIGHT of the Living Dead (Noite dos Mortos Vivos). Dirigido por Tom Savini. Estados Unidos: 21st Century Film Corporation, Menahem Golan Productions, 1990 (88 min.).
*Stefany S. Stettler é bacharela e licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, pesquisa sobre cinema de zumbis desde 2019 e possui um zine publicado pela N-1 Edições