Giovanna Venturini*

 

Considerado por muitos um dos grandes mestres do terror, Stephen King lançou seu livro Thinner (traduzido no Brasil como “A maldição do cigano”) em 1984 sob o pseudônimo de Richard Bachman. Na história, Bill Halleck é um advogado obeso que acidentalmente atropela e mata uma idosa cigana, mas que acaba saindo impune — graças à conivência do juiz e do chefe de polícia local. Quando Halleck sai do tribunal, um velho cigano de nariz carcomido toca seu rosto e diz: “mais magro”. A partir deste ponto, o advogado começa a perder peso vertiginosamente e de forma incontrolável. Assim, a trama acompanha Bill em sua corrida contra o tempo, buscando uma forma de encontrar o cigano e anular a maldição antes de emagrecer ao ponto de desaparecer completamente. Aqui cabe um aviso: este ensaio contém spoilers do livro.

Apesar de Thinner se tratar de uma obra de ficção, sua narrativa traz temas pertinentes que encontram ecos no mundo real: vingança, justiça, alteridade, estigma… são assuntos que se entrelaçam na trama, usando como fio condutor uma maldição. A escolha da identidade étnica dos personagens tampouco se dá por acaso: a própria ideia da maldição em questão — e de quem a realiza — está diretamente atrelada ao estereótipo enraizado de que o povo cigano (também chamado de Roma ou Romani) estaria ligado à feitiçaria. 

Contudo, esta é apenas uma das várias ideias preconcebidas a respeito do povo Roma que constituem o imaginário não-cigano (gadjé). No próprio livro em questão, esta não é a única manifestação do estigma cigano: em diversos momentos, King narra através de seus personagens uma história de marginalização envolvendo este povo — ilustrando como os ciganos são vistos ao mesmo tempo com temor e fascínio. 

De forma geral, a estigmatização do povo Romani costuma perpassar estas esferas: vivem à margem da sociedade e são vistos como ladrões, feiticeiros e boêmios, mas ao mesmo tempo compõem um imaginário ligado a mistério e liberdade. Essa presença dos ciganos na história e a forma como as tensões se apresentam entre grupos distintos nos permitem analisar Thinner sob a ótica do autor Erving Goffman, especialmente através do seu conceito de estigma.

Inicialmente, Goffman resume o conceito de estigma como “a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena” (GOFFMAN, 1980, p. 7). É interessante ressaltar o termo “situação” nessa definição para entendermos uma característica essencial do estigma: ele não é absoluto. Na teoria de Erving Goffman, trata-se de um atributo profundamente depreciativo, mas que só faz sentido se analisado dentro de um conjunto de relações. Assim, o estigma não existe no vácuo: se forma no encontro, no manejo da tensão entre os “normais” e os estigmatizados. 

Estas duas últimas categorias podem ser vistas na narrativa através da constante dualidade entre os “bons sujeitos” e aqueles que estão na margem — especialmente os ciganos. No começo da trama, Bill Halleck está firmemente ancorado do lado dos “normais”: o trabalho de advogado, sua família, seu círculo social, seus hábitos… tudo a respeito do personagem reforça que ele é parte dos “gente fina”. Ao receber a maldição de Taduz Lemke — o velho cigano —, Halleck enfrenta questões que vão além dos problemas físicos causados por seu emagrecimento descontrolado: não somente sua saúde fica comprometida, como sua presença esquelética passa a ser motivo de repulsa das pessoas “comuns”. 

Outro fator importante é o rechaço que o protagonista sofre de seu círculo imediato: toda vez que Bill confessa para sua família e amigos que acredita estar sumindo por ter sido amaldiçoado por um velho cigano, as pessoas ao seu redor acreditam que ele está louco. Assim, ao mesmo tempo em que seus quilos vão desaparecendo, Bill é arrancado de seu lugar de normalidade e colocado forçosamente à margem. 

Uma vez rechaçado por seus iguais, Bill Halleck se vê também como um estigmatizado; em seu estado de magreza extrema, se percebe como uma aberração de circo. E à medida em que busca saber mais sobre sua condição e sobre maneiras de impedir o próprio desaparecimento, o protagonista nota que a maldição de Taduz Lemke se trata de uma vingança feroz; uma forma de fazer justiça pela cigana atropelada — já que a “gente fina” sempre protege a si mesma e trata os ciganos como subalternos. 

A maldição de Lemke vem permeada de uma forte ideia de “gota d’água”; de um povo que sofreu todo tipo de discriminação e não espera encontrar justiça entre os “homens brancos da cidade”, como alguns ciganos se referem a Halleck e pessoas semelhantes no livro. O uso desta expressão na trama também é interessante: enquanto Bill e os “bons sujeitos” se consideram dentro da “norma” do mundo, a frase “homem branco da cidade” acaba colocando esta categoria de pessoa em um lugar de estranhamento, no qual há uma mudança de perspectiva — desta vez, o ponto de referência são os ciganos, e os “estranhos” são os gadjé.

Esta passagem encontra ecos nos estudos decoloniais, especialmente ao tratar do tema da alteridade: definir o outro é definir também a si mesmo, e o estabelecimento daquilo que é “normal” nunca se dá por acaso. Gayatri Spivak aponta como o projeto imperialista se ocupou de firmar o sujeito colonial como “o Outro”, ao mesmo tempo em que estabeleceu a perspectiva dos colonizadores como um ponto de vista totalizante-universalizante (SPIVAK, 2010). No microcosmo de Thinner, podemos levantar possibilidades a partir dessas categorias fundadas no imperialismo para pensar a subalternidade dos ciganos: enquanto Halleck percebe seu modo de vida ao início do livro como uma verdade absoluta, esta perspectiva vai se alterando à medida em que o conflito da trama se desloca para a margem. Inclusive, Bill só consegue começar a resolver sua maldição quando começa a de fato operar na margem: isto se materializa no personagem de Ginelli, o gângster italiano nova-iorquino que acaba por ser seu único aliado.

Para além do estereótipo comum associando ciganos à feitiçaria, King também explora outro lugar-comum ao tratar de uma figura específica: Gina Lemke, a jovem cigana armada com uma atiradeira. A todo momento, a beleza de Gina é ressaltada, assim como efeito que ela tem sobre os homens que encontra: ainda que sequer esteja pensando em seduzir os homens que encontra — na verdade, a emoção mais recorrente da personagem é a raiva —, toda aparição de Gina é traz a visão romântica de que ela é uma cigana misteriosa e voluptuosa, de que todos os homens ficam afetados por sua presença e sentem um enorme desejo por ela. 

O uso do termo “romântico” aqui é proposital: esta figura da cigana que instila desejo remonta ao Romantismo, especialmente à obra Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo — mais conhecida como O Corcunda de Notre-Dame. As passagens que remetem ao quão irresistível é Gina poderiam muito bem falar da própria Esmeralda, e compõem esse imaginário do povo Roma como uma gente exótica e ardente — mais um ponto dentro do eixo temor-fascínio que caracteriza o estigma cigano.

De acordo com os temas trabalhados em Thinner, Stephen King nos faz pensar em algumas questões: até onde uma vingança pode ir? O que ainda pode ser considerado como uma realidade absoluta perante os nossos encontros com o outro? Quando defino a mim mesmo como a norma, o que isso significa para aquele que é diferente? Por meio destas perguntas, o mestre do horror traça uma narrativa que vai além do conflito pessoal de Halleck e Lemke, englobando também os grupos aos quais pertencem. No fim das contas, vemos que maldições são, na verdade, ressentimentos. Se formos seguir a lógica de Thinner, podemos ainda pensar em como esses rancores podem escapar do nosso controle; ou mesmo em como essas maldições adquirem vida própria. 

Referências Bibliográficas

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

KING, Stephen. A maldição do cigano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

*Giovanna Venturini é mestranda em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde desenvolve pesquisa sobre o direito à educação do povo cigano. É também tanatóloga e pesquisadora na área da morte, vinculada ao LABÔ PUC-SP; nesta área, suas pesquisas se dividem entre patrimônio cemiterial e o impacto do tabu da morte na concepção de monstruosidade. Quando não está pesquisando e nem falando de defuntos, Giovanna é ilustradora, escritora e constante leitora de histórias de terror.