Em 2016, um novo capítulo da confusa franquia Halloween começava: agora nas mãos da Blumhouse de Jason Blum, o universo de Michael Myers ganhou David Gordon Green e Danny McBride como guias para uma nova trilogia, “sequência direta” do original de 1978. Ignorando todos os outros nove filmes e criando uma nova continuidade, Halloween (2018) caiu nas graças do público apesar de ter seus críticos, por canalizar fanservice e, talvez principalmente, trazer Jamie Lee Curtis num retorno digno da final girl e badass Laurie Strode.
Dois outubros depois, Halloween Kills – O Terror Continua chega aos cinemas vestindo o crachá de “segundo capítulo” sem nenhuma vergonha. A história começa minutos depois do final do primeiro filme; as três mulheres da família Strode chegam ao hospital de Haddonfield para cuidar dos ferimentos de Laurie, mas descobrem que Michael ainda está vivo e matando. E quando a informação chega aos noticiários, os moradores da cidade juntam-se à briga: o mal morre essa noite.
Mantendo sempre os assassinatos como força motriz, o filme de 2021 se desvencilha das expectativas do gênero ao ampliar o escopo de seus personagens, inflando o elenco com nomes velhos e novos, abrindo um caminho pouco trilhado pelos slashers. E tendo em vista que Halloween (2018) provocava reflexões sobre o trauma de Laurie e a repercussão de uma noite trágica na vida de sua família, o novo filme também se desprende das expectativas de sua própria trilogia. Kills já abre seus 105 minutos de duração com um contraponto: não foi apenas Laurie que sobreviveu a Michael naquela noite, toda a cidade é a própria final girl.


Há um excesso de dependência no filme original de 1978 que poderia prejudicar a história, mas que funciona uma vez que a nova trilogia se propõe desde o início a ser uma continuação. A sequência de abertura acompanha os momentos finais da noite de quarenta anos antes, momentos que feriram para sempre a vida do policial Hawkins da mesma forma que marcaram a vida de Laurie. São reintroduzidas também as crianças protegidas por ela no original e outras vítimas, agora adultos membros da comunidade de Haddonfield, figuras que povoam a cidade, dão rostos às cicatrizes e ao trauma coletivo.
No papel, essa evolução parece interessante, uma expansão da subjetividade temática proposta no filme de 2018 (“É tudo sobre trauma”, diz Jamie Lee Curtis). Infelizmente, Halloween Kills falha na execução: é construído sobre um roteiro indelicado, descuidado e cheio de palavras de ordem vazias. -Minto, talvez tivesse sido melhor se as palavras de ordem fossem vazias. Ao tentar criar alguma mensagem sobre os perigos do comportamento de massa, alguns trechos acabam soando como apitos caninos para certas alas da sociedade americana contemporânea. O diretor David Gordon Green pode dizer em sua defesa que o filme foi gravado em 2019, antes da eleição de Biden e da infame invasão do Capitólio americano; mas é fato que o filme ecoa, reproduz e, em certas interpretações, reafirma a posição perigosíssima da violência de manada. E isso tudo só acontece por conta de um roteiro fraco, pois o mesmo até tenta pincelar críticas, mas não consegue escolher um lado e nem criar uma linha de raciocínio coesa. O resultado é uma bagunça, mas uma bagunça com ideias perigosas. Soma-se a isso, como cerejas do bolo, a constante presença e valorização das armas de fogo.
Em certo ponto, quando a personagem de Judy Greer defende que se confie nas autoridades para evitar que a violência saia de controle, nossa protagonista Laurie responde com um retumbante “Bom, o sistema falhou!” e incentiva que os cidadãos de Haddonfield peguem suas armas e saiam à caça. É um momento incômodo de assistir, e que não fica menos ruim quando menos de dez minutos depois a própria Laurie volta atrás, sem o impacto necessário para denotar qualquer crescimento. O que o filme quer dizer com tudo isso? Em certos pontos, parece que a intenção é… humanizar MIchael? Talvez vir a perdoá-lo? Meu palpite é que nem eles sabem muito bem.


Mas Halloween Kills tem também suas qualidades, apesar do tom crítico desse texto até aqui. Preciso parabenizar a pessoa que tomou a decisão de escalar Judy Greer para interpretar a filha de Laurie. Karen começa o primeiro filme relutante e incrédula acerca da maldade do mundo, vê os piores medos de sua mãe concretizados e agora torna-se a voz da razão em meio a tantos personagens mais (na falta de uma palavra melhor) burros. Greer protagoniza alguns dos trechos mais marcantes do filme e que serão vistos e revistos em muitas páginas de Instagram, portais no Twitter e fancams no TikTok. Outro destaque é Andi Matichak, sua filha adolescente, que entrega os melhores gritos de todo o elenco. Thomas Mann como o jovem policial Hawkins nos trechos de flashback também tem o carisma a seu favor, carregando algumas cenas que, sem ele, talvez não funcionassem.
No entanto, o maior destaque do filme é sem dúvidas os galões de sangue. Gordon Green pode não apostar no suspense e na antecipação como fez em 2018, mas suas mortes continuam provocando reações guturais, com influências deliciosamente cartunescas do cinema de ação e de comédia. Se abrimos mão do susto e da tensão, damos espaço ao gore e à criatividade – eu pessoalmente nunca tinha visto alguém ser assassinado pelo sovaco. Há certo estranhamento quanto a quem são as vítimas de Michael – em sua maioria figuras sem nome paralelas à trama principal – mas faz sentido tematicamente, além de ser um deleite visual vê-los sangrar. E, sem elaborar muito, há também uma camada de ruptura com a heteronormatividade branca costumeira nos filmes de terror, muitos personagens negros populam o filme e um casal gay ganha certo destaque. Uma análise racial e queer futura pode melhor examinar o que estas representações significam no macro, mas na saída do cinema, o gosto que fica na boca é bom.
A fotografia de Michael Simmonds capricha ao contornar as figuras que povoam Haddonfield contra a escuridão da noite, mesmo que Green escolha manter sua câmera próxima aos personagens, se esquivando de dar uma noção de espaço para a cidade – o que, dado a premissa do filme, teria sido uma decisão melhor. Mas toda a atmosfera depende irredutivelmente da camada sonora, que fica a cargo da equipe do lendário John Carpenter, o próprio criador de Michael Myers. Seu crédito de produtor não é nada perto de sua contribuição na trilha.


Por fim, não há como comentar sobre Halloween Kills sem mencionar que o filme é, nitidamente, uma preparação para Halloween Ends, que chega em 2022. O fato de que a proposta original em 2016 era de apenas dois filmes fica nítido; ao expandir para uma trilogia, cria-se um episódio intermediário. Talvez essa seja, inclusive, a causa para uma trama superficial e mal explorada sobre mentalidade de rebanho. E talvez o filme de hoje não sobreviva independentemente no futuro, mas já que ele é um segundo ato, estou curiosíssimo para o grand finale.
Se no fim das contas o que importa para um filme de Halloween é sua brutalidade e a criatividade de sua violência, então Kills atinge sua marca. Com cenas icônicas e gritos dignos, seu ritmo consegue proporcionar uma boa experiência mesmo que as tramas que populam estes minutos sejam uma bagunça de significados. Não consigo ignorar a ausência de comprometimento com uma visão temática coesa, mas consigo me deliciar com os bons momentos. E por favor, continuem escalando Judy Greer para filmes de terror.