Giovana Chiconelli*

Você está vendo um filme de terror grotesco, nojento, daqueles em que o sangue é laranja e nenhum dos personagens consegue manter todos os membros presos no próprio corpo. Então o personagem principal, aquele que o filme construiu para ser por quem o público sente mais empatia, tem sua cabeça explodida em pedacinhos. Qual é sua primeira reação?

Muitas pessoas podem rir, às vezes de nervoso, às vezes porque acharam uma graça genuína na explosão de cabeças de personagens em filmes de terror. Outras podem desviar o olhar por nojo. Porém, a primeira sensação que todos têm é uma de distância emocional dos personagens ali sofrendo.

Acaba sendo difícil sentir o que eles estão sentindo, e essas cenas agressivamente brutais dificultam muito mais. Ninguém que está vendo um filme de terror sabe como é o sentimento de ter sua cabeça explodida (e a maioria também não sabe como é ter um machado preso no abdômen, ou o corpo possuído por demônios).
Tantos filmes de terror optam pelo fantástico, pelo grotesco, pela explosão de sangue na tela para espantar o espectador logo de cara. Porém, essa escolha cria um sentimento de distância entre a audiência e os personagens, um obstáculo para a identificação e empatia do público com o que acontece na história.
Os filmes de Julia Ducournau – a diretora francesa de filmes de terror que foi a segunda mulher a ganhar o prêmio de melhor diretora no Festival de Cannes – não deixam de mostrar imagens brutais e gráficas de assassinato, canibalismo, e desmembramento. Mas, são filmes que conseguem produzir empatia no espectador pelos personagens, mesmo quando os personagens são os vilões de seus próprios filmes.
Como ela constrói isso?

Grave (2016) é o primeiro longa-metragem da diretora. Ele conta a história de Justine (Garance Marillier), uma jovem que acabou de entrar na faculdade de veterinária, onde a irmã mais velha também estuda. Justine foi vegetariana a vida inteira, mas no primeiro trote da faculdade ela é forçada a comer carne, e esse ato desperta uma fome incontrolável por carne humana na jovem.

Ao longo do filme, Justine morde lábios, chupa sangue de dedos decepados e come frango cru. Se esses acontecimentos repulsivos fossem mostrados sem que antes Julia Ducournau construísse o personagem de Justine, eles iriam parecer somente isso: um ato repulsivo que causa nojo à quem assiste.
Julia faz o espectador sentir o que Justine sente quando seus sentimentos são identificáveis, e principalmente quando eles acontecem com seu corpo de maneiras pequenas. Antes de começar a desejar carne, Justine forma uma reação alérgica em seu corpo e vive noites de agonia e coceira. Um incômodo simples, que muitos já sentiram antes ou conseguem imaginar. Uma dor mais próxima do público comum do que cortar o braço fora com uma serra elétrica. Minutos antes de Justine comer carne humana pela primeira vez, e da própria irmã ainda por cima, ela sente dor quando sua irmã tenta depilar seus pelos com cera quente e a cera fica presa.

Em entrevista à Huck Mag, a diretora afirmou que usa o que ela mesma chama de “empatia do corpo”, para formar uma conexão com seus personagens moralmente questionáveis. Ela disse haver muitos jeitos de criar empatia por um personagem, e um deles é por dor física. Como com aquela agonia que o ser humano sente ao ver outra pessoa pisar num lego, ou bater o mindinho em uma quina. Julia faz o espectador sentir o que o personagem sente por meio de uma empatia corporal instintiva.

Ela utiliza a mesma tática em Titane (2021), seu segundo filme. Sobre Alexia (Agathe Rousselle), uma dançarina que dança de forma sexy em cima de carros em mostras de automóveis, e assassina. Quando um de seus assassinatos dá errado e ela precisa fugir, ela assume a identidade de Adrien, um homem que tinha desaparecido quando criança e vai morar com Vincent (Vincent Lindon), o pai dele. Se já não era difícil para a audiência se identificar com Alexia, ela também passa a maior parte do filme grávida, resultado de quando transou com seu próprio carro.

Mas no final do filme, quando Alexia morre, é impossível não sentir tristeza profunda. Julia consegue mais uma vez trazer empatia por um personagem muito específico, assassino atraído sexualmente por carros.
Ao descobrir estar grávida, Alexia entra em pânico e tenta realizar um aborto e si mesma com seu prendedor de cabelo afiado. A dor é óbvia para Alexia, e ainda mais óbvia para o espectador que sente sua aflição ao vê-la enfiar um objeto afiado na vagina. Logo depois do aborto não dar certo, Alexia mata vários personagens em sequência. Uma cena que cria uma conexão com o espectador, seguida de uma de um assassinato em série. Julia Ducournau sabe exatamente o que está fazendo com seu público.

Para completar sua transformação em Adrien, Alexia quebra seu próprio nariz em uma pia. Ducournau corta a cena logo antes de seu nariz se conectar com a pia, mas ela é tão agoniante como se o nariz do espectador também tivesse se quebrado.

Essa necessidade de trazer empatia para filmes de terror sempre existiu. Afinal, a melhor parte de um filme assustador é o medo, a antecipação de que tudo vai dar errado para aqueles personagens. E é difícil sentir medo e pavor por um personagem quando não se tem empatia para com ele, quando não se está investido em seu bem-estar.

De acordo com a professora americana de estudos de cinema, Carol J. Clover, o cinema, mas principalmente os filmes de terror slasher garantiam que seus personagens principais femininos tivessem características tipicamente masculinas para que as audiências – que as pessoas achavam ser de uma maioria avassaladora de homens – pudessem se identificar com elas.

Essa questão está longe de ser uma preocupação para Ducournau. Mas porque o intuito da diretora é justamente mostrar a humanidade em personagens com os quais é difícil se identificar, e ela não tem medo de colocar minorias como protagonistas. A própria Alexia, embora não declare isso abertamente, se encontra em gêneros diferentes – em mulher como Alexia, em homem ao tomar a identidade do filho de Vincent, e numa mistura quando aceita sua feminilidade em um corpo masculino quando dança de forma sexy e feminina na frente de vários homens na festa dos bombeiros.

Julia Ducournau cria empatia por seus personagens, fazendo a audiência se identificar com as dores comuns deles, aquelas que todos sentem no dia a dia. Desde coceira, até humilhação, até desespero de perder as estribeiras de uma situação que antes parecia estar sob controle. Ela faz com que as pessoas se ponham no lugar de canibais e assassinos. Ela consegue que o público se preocupe com o bem-estar de mulheres, e de pessoas que não são cis gênero, mostrando a humanidade presente em cada personagem, que anda lado a lado com as suas dores.

* Desde quando os vizinhos de Giovana Chiconelli fizeram ela ver O Chamado quando ela tinha 6 anos ela carrega um fascínio por filmes de terror, e um trauma com poços. Formada em jornalismo, ela já escreveu reportagens e críticas de cinema para publicações online. Mas seu verdadeiro amor jaz em fazer filmes, participando do departamento de arte em curtas e longa-metragens brasileiros, e produzindo, escrevendo e dirigindo seus próprios curta-metragens (de terror, claro). Ela está acostumada a ouvir que só sabe escrever sobre coisas esquisitas.