Cleiton Lopes*

Acredito que não é novidade pra ninguém que Stephen King não gostou nada do que Stanley Kubrick fez ao adaptar O Iluminado (1980) para as telas. Entretanto, a obra cinematográfica é uma pérola na história do cinema. É um título sempre presente nas mais diversas listas de melhores, sejam relacionadas ao terror ou cinema em geral. Tanto que ele conseguiu “elevar” seu status de “filme de gênero” para  “filme do Kubrick”. Em entrevista à revista Rolling Stone em 2014, o escritor falou sobre o assunto:

“O livro é quente, o filme é frio; o livro termina com fogo, e o filme, com gelo. No livro, existe um verdadeiro arco em que você vê este sujeito, Jack Torrance, tentando ser bom, mas que, pouco a pouco, vai se tornando maluco. E, quando assisti ao filme, Jack era louco desde a primeira cena. Tive que ficar com a boca fechada na época, era uma exibição antecipada, Jack Nicholson estava presente. Mas fiquei pensando comigo mesmo, no momento em que ele apareceu na tela: ‘Ah, eu conheço esse cara. Eu já o vi em cinco filmes de motoqueiro, em que Jack Nicholson fazia o mesmo papel’. E é tão misógino. Quero dizer, Wendy Torrance simplesmente é apresentada como uma dona de casa que não para de berrar. Mas essa é só a minha opinião, é só o jeito como eu sou.” Em 1997, King fez sua própria versão filmada, dessa vez em formato de minissérie para a televisão, mas ficou no esquecimento. O que Kubrick imprimiu na tela seria difícil de superar.

Enquanto O Iluminado teve seu lançamento literário em 1977 a continuação impressa veio somente em 2013 com Doutor Sono. Muito depois que o escritor já havia lançado outros sucessos e esses tinham ganhado inclusive adaptações como Cujo (1983), Cemitério Maldito (1989) e It – Uma Obra Prima do Medo (1990), lançado como minisérie para a televisão. Mas o que diferencia essas versões filmadas da visão Kubrick para a obra de Stephen King, quer o escritor goste ou não, é que nenhuma delas conseguiu um status de obra prima com a capacidade de ser vista com tal seriedade que fura a própria bolha dos filmes de gênero. Principalmente pensando no terror, que é visto como um gênero menor e fadado a viver de faturar dinheiro de mesadas de adolescentes (o que eu discordo totalmente). Visto isso, como fazer a continuação de um filme que, mesmo rejeitado por seu idealizador original, resistiu ao tempo e até hoje é lembrado e reconhecido?

Devo dizer que tenho muitas ressalvas com relação à continuações e remakes. Esse último caso então, me dá até arrepios. Sempre me soa como algo caça níquel e raramente temos sequências tão boas ou melhores que o original. Aqui devo citar James Cameron que conseguiu esse feito com Aliens: O Resgate (1986) e O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991). No caso de Doutor Sono, o primeiro fator a favor dessa continuação é o fato de que ela foi pensada, escrita e lançada pelo próprio King em formato de livro. O que afasta aquelas ideias malucas de produtores de esticar uma obra para além da conta só pra ganhar uma graninha escorando num sucesso anterior (Oi? Alguém disse trilogia O Hobbit?).

Em texto também para a revista Rolling Stone, o jornalista André Rodrigues relata o seguinte sobre o livro Doutor Sono: “Stephen King continua criando narrativas fantásticas que impregnam a cultura pop. Desta vez ele mexeu com a própria insegurança ao tentar responder a pergunta: ‘O que aconteceu àquele garoto de O Iluminado?’ Doutor Sono retorna a trajetória dos sobreviventes do livro original e relembra como as coisas de fato aconteceram, já que no papel os sustos e as situações são bem diferentes dos da versão cinematográfica.”

O novo capítulo da história de King, amplia o universo de O Iluminado com novos personagens em uma espécie de “mundo aberto”, em uma história que não se passa apenas nos limites do Hotel Overlook, como era basicamente o original. O menino Danny cresceu e, apesar de ter sobrevivido aos acontecimentos do hotel, ele se tornou um adulto depressivo e alcoólatra. As coisas começam a mudar quando ele se muda para uma pequena cidade que lhe proporciona um recomeço e um emprego de enfermeiro para pessoas em estado terminal. Quando sua vida começa a se aproximar de uma normalidade, ele precisa ajudar uma garota que é iluminada como ele e está sendo perseguida por pessoas cruéis.

O que é o cerne da adaptação de Doutor Sono para o cinema é que o diretor Mike Flanagan, que ficou conhecido principalmente pela série Maldição da Residência Hill (2018) e também dirigiu uma outra adaptação de King Jogo Perigoso (2017), tem total consciência de que não é Stanley Kubrick. Com isso, ele se liberta de qualquer tentativa de copiar o que foi feito. Ele parte por criar uma identidade própria para o filme, mas claro, sem deixar de fazer referências e homenagens pontuais ao clássico.

O primeiro elemento que causa esse distanciamento da obra original é com relação à volta dos personagens já conhecidos. Ao invés de utilizar computação gráfica para reproduzir os atores de O Iluminado, optou-se por escalar atores reais e que lembravam os da versão de Kubrick. Isso facilita os custos de produção e cria uma nova identidade para a continuação. Evita também algumas estranhezas como ocorreu em O Irlandês (2019). Martin Scorsese escalou os atores da velha guarda dos filmes de gangsters Al Pacino, Joe Pesci e Robert De Niro e os rejuvenesceu de forma digital. Adoro o filme porém, em momentos de ação, tínhamos um rosto jovem, mas os movimentos eram de alguém que já passava bastante dos 50 anos.

Outro ponto, e esse vai mais para conta do King, é que partindo para um universo além dos limites do Overlook, abrimos o leque para a possibilidade de novos personagens. E devo acrescentar personagens interessantes. A menina Abra que Danny precisa ajudar, é carismática e nos cativa a ponto de torcer por ela e sofrer nos momentos de tensão. Os peculiares membros do Nó Verdadeiro têm características únicas que nos fazem simpatizar por eles, mesmo sabendo que é errado (o que é uma excelente característica para vilões). Destaque para a personagem Rose e sua cartola. Ela é sedutora, ameaçadora e explosiva em questões de instantes. A versão traumatizada e adulta de Danny também convence bastante e é o tipo de personagem que apesar de sua fragilidade, é crível quando ele dá uma guinada e usa seus poderes na potência máxima. Claro que aqui também existe todo um trabalho de atuação envolvido. O grande acerto, inclusive, foi colocar Ewan McGregor no elenco. Faz um excelente Danny.

Unindo esses pontos temos uma trama que se desenvolve de forma muito orgânica. Os conflitos e motivações dos personagens vão se encaixando de forma muito interessante. Tudo é muito bem justificável e Flanagan não tem pressa nenhuma de contar a história. Dá o tempo que for necessário para a trama se desenvolver e assistirmos as aproximações e relações com os personagens. Evita os famosos jumpscares e investe no humano (ou sobre humano) e desenvolvimento dos ambientes. Principalmente nos momentos que voltamos ao Hotel. Aí certamente é uma referência e, mais que isso, uma reverência ao filme de Kubrick. Nada mais justo, inclusive a gente fica no aguardo que isso aconteça de fato. Lembro de quando terminei de assistir ao filme pela primeira vez, mesmo sem ter lido o livro, já ter uma impressão de ter sido uma boa adaptação. Era como se eu tivesse lido a história através dos olhos de outra pessoa e acredito que esse é o sinal de uma boa adaptação.

A grande questão mesmo era: será que dessa vez Stephen King aprovou a adaptação?  Em entrevista à revista Entertainment Weekly, King contou: “Adoro os filmes de Mike Flanagan, e trabalhei com ele antes de Jogo Perigoso. Então eu li o roteiro que ele produziu, com muito cuidado, e disse: ‘Tudo que eu não gostei na versão do Stanley Kubrick de O Iluminado foi redimido nessa história'”. O escritor foi uma das primeiras pessoas a assistirem ao filme pronto e Flanagan conta como foi sua reação ao saber que agradou ao criador da obra original: “O filme terminou, e os créditos apareceram, e ele se inclinou, colocou a mão no meu ombro e disse: ‘Você fez um belo trabalho’. E então eu apenas morri”. O filme realmente é muito bom. Claro que não chega a ser um Kubrick, mas é uma sequência digna de ser vista.