Into the dark é, pelo menos na minha opinião, um dos projetos de terror mais interessantes dos últimos anos. Trata-se de uma espécie de série onde, todo mês, é lançado um telefilme de cerca de 80-90 minutos de duração que conta alguma história de horror tendo como pano de fundo um feriado. A produção é da Blumhouse e os episódios mensalmente saem no Hulu (embora também seja fácil encontrá-los por meios… escusos digamos…) e sem dúvidas tem como maior mérito dar uma plataforma para jovens cineastas que trabalham com o gênero. E pelo menos para mim a série também soa como uma espécie de mea culpa da produtora em relação a polêmica que ela se meteu em 2018 quando o CEO da empresa, Jason Blum, disse que não produzido nenhum filme dirigido por mulher pois “Não existem muitas mulheres diretoras ponto, e muito menos inclinadas ao terror”.

O próximo episodio/filme que será lançado, My valentine, será dirigido pela Maggie Levin e dos 16 lançados até agora quatro foram dirigidos por mulheres, sendo elas: Sophia Takal (New year, new you), Chelsea Stardust Peters (All that we destroy), Hannah Macpherson (Pure) e Gigi Saul Guerrero (Culture Shock).

É nesta última que iremos focar aqui. Como dá para perceber pelo nome, Gigi é uma diretora latina, mais especificamente uma diretora e atriz mexicana. Desde 2011 Gigi dirige curtas de horror que tem como cenário a fronteira do México com os Estados Unidos, curtas como El gigante e Madre de Dios além dos segmentos que ela fez para antologias como Mexico barbaro e ABC’s of Death 2.5, e dos episódios que ela dirigiu para séries como The purge e La quinceañera. Culture Shock (Fronteira do Medo como foi nomeado no Brasil) foi o seu primeiro longa (que ela não só dirigiu, como também roteirizou), tem como foco o feriado do quatro de julho e traz várias das suas marcas.

A história foca em Marisol (Martha Higareda), uma mexicana grávida que está tentando atravessar a fronteira para os Estados Unidos pela segunda vez. Desta vez ela se junta a um grupo com o misterioso Santo (Richard Cabral) e o pequeno Ricky (Ian Inigo) e são liderados pelo coyote do grupo por um caminho longo e perigoso durante a noite. Algo dá errado no meio do caminho mas, embora tudo pareça perdido, a protagonista misteriosamente acorda num local que beira o utópico. A mulher que a recepciona (interpretada pela veterana Barbara Crampton) diz que ela conseguiu chegar nos Estados Unidos que todos os seus problemas acabaram, mas Marisol não deixa de achar que algo ali está muito errado.

De longe o episódio/filme mais aclamado da série com incríveis 100% no Rotten Tomatoes (que nem sempre é um parâmetro) Culture shock faz por merecer todos os elogios que andou recebendo. Podemos começar pelo fato de que esse filme é prova do porque é essencial que membros de certos grupos minoritários politicamente (mulheres, negros, latinos, lgbt etc) possam contar eles mesmos as suas próprias narrativas. Gigi (adoro esse nome) representa aqui vários elementos comuns da religiosidade mexicana (as constantes orações, a Santa Morte, os terços que os personagens carregam e as oferendas que fazem para os santos e para os mortos) de forma super integrada com a narrativa e sem em momento algum parecer algo exótico ou histérico. Afinal, quantas vezes vocês já não viram filmes de horror com senhoras mexicanas supersticiosas desesperadas agarradas com terços e rezando em espanhol?

A diretora também faz aqui uma paródia deliciosa dos Estados Unidos que se imagina como esse local idílico em tons pastéis e que tem cheiro de torta de maçã mas que na verdade é claramente um local extremamente violento para o que é diferente e que não acolhe o diferente, mas sim procura assimilá-lo. Isso culmina num final, na minha opinião, simplesmente incrível onde (sem spoilers) a protagonista descobre como se livrar daquela situação usando a sua própria cultura contra aquele sistema.

Além de todo esse lado mais político a história é super bem contada e o filme todo tem um clima que parece saído de um bom episódio de “Além da imaginação”. Um clima a princípio confuso e absurdo (no melhor sentido possível) que pouco a pouco desemboca num comentário sobre como a nossa própria sociedade pode ser absurda. Os atores estão um arraso, em especial os dois protagonistas: Martha Higareda e Richard Cabral. Não só ambos são ótimos atores como os personagens são extremamente bem construídos e complexos, o personagem de Cabral em especial pouco a pouco vai sendo revelando para o público e quebrando a aura ameaçadora que tinha a princípio. Sem falar que é sempre bom ver uma atriz como a Barbara Crampton (de clássicos oitentistas como Re-Animator e Do além) conseguido brilhar em papéis em filmes atuais.

O filme claramente tem alguns problemas, dos quais eu destacaria um personagem estadunidense bonzinho que cai de paraquedas na história (um ex-machina que me irritou demais) e uma certa inconclusão sobre o que afinal estava acontecendo ali. Além é claro do orçamento de filme para TV que acaba limitando muito os rumos que a história poderia tomar. Mas honestamente isso não interfere tanto no resultado final que segue sendo extremamente divertido, criativo e ácido.

Recentemente fiquei sabendo que o longa foi o trampolim que a Gigi precisava e que agora ela é considerada um dos nomes mais promissores do terror atual e com outros projetos já rodando. Não sei vocês, mas eu estarei esperando ansiosamente.