Luiz Eduardo Kogut*

De grande alarde em seu momento de lançamento, os dois filmes da franquia Hostel, dirigidos por Eli Roth, acabaram enterrados junto a febre torture porn, iniciada em meados dos anos 2000 e finalizada no início da década seguinte. O subgênero abarcou lançamentos do horror com a temática da tortura, que era vista como gratuita, com um viés pornográfico, “prazeroso” para o telespectador. Os filmes de Roth se viam ao lado da franquia Jogos Mortais e uma dúzia de filmes importados de ondas de cinema “extremista” mundo à fora, nos quais havia essa abordagem direta e gráfica de uma violência física extrema. A ideia de um “pornô de tortura” surge das relações que cada filme cria com essa violência física. Jogos Mortais, por exemplo, nasce da ideia de um thriller policial envolto da ideia da tortura dentro de um “jogo” – seja o literal de sobrevivência e tortura colocado na narrativa, que ainda carrega tons moralistas, seja o jogo de investigação, descoberta e reviravoltas da trama. Mas as cenas gráficas e os cenários mirabolantes (corte a própria perna para sobreviver!) permaneceram no centro, com os jogos como justificativa para essas cenas cada vez mais extremas conforme novos filmes são lançados.

Já a duologia Hostel tem uma relação muito mais direta com essa tortura, sem o
intermédio do ‘jogo’: seguindo jovens americanos em um mochilão pela Europa, somos apresentados a uma organização que sequestra turistas e os vende para sessões de tortura. A violência extrema, o chamado gore, não está escondida pelo véu do jogo moralista do Jogos Mortais, no qual havia um tom até mesmo punitivista. Em Hostel, de 2005, ela apenas está ali, o ponto final da trama, uma parte daquele mundo. Parte disso se deve à estruturação dos filmes e a apresentação de suas personagens: o filme se divide em uma metade inicial que se assemelha a um besteirol juvenil, ainda em voga no cinema norteamericano pós-American Pie, no qual nossos protagonistas se dedicam, exclusivamente, à busca por sexo no velho continente. Não há grandes voltas no roteiro, é assim que somos apresentados a eles, de maneira direta. O trio de personagens é unidimensional, querem transar e fumar maconha, assim como estigmatizam a Europa, um espaço livre para suas fantasias – visão corroborada por Roth, que filma uma Amsterdam, e uma Eslováquia, maleável para a visão de mundo de seus personagens. “Você pode pagar para fazer o que quiser” um personagem diz a o outro, se referindo à vida na Eslováquia: como no besteirol, o mundo se dobra para a jornada torta de autodescobrimento de seus
personagens.

Na segunda parte, agora como um slasher, a boa vida é interrompida. Um a um os
personagens são capturados para o velho ritual do gênero, no qual a carne jovem,
pecaminosa, terá sua devida punição na morte. Roth trabalha ambos os micros exercícios de gênero com a mesma abordagem – e o mesmo prazer. Quem sabe a ideia de um torture porn para categorizar Hostel seja justamente de uma autoconsciência existente nos dois filmes, sabendo estar usando arquétipos de gêneros vistos como descartáveis, como a comédia suja e o terror de baixo orçamento, mas atento aos processos de cada um desses, os encarando de maneira direta e apaixonada. A partir do momento que chegamos à tortura, todo esse interesse transpira para o novo universo perverso. Ao mesmo tempo, o lançamento dos dois filmes ostentava o crédito de produção executiva (e os elogios) de Quentin Tarantino, que, a alguns olhos, ao menos tentava elevar a produção acima desse rótulo.

A grande vocação dos filmes se encontra, porém, no que há de comum entre os
subgêneros do besteirol e da espécie de exploitation que Roth trabalha: a noção do
americano como estrangeiro, como corpo estranho, quase como objeto de estudo. Ele está no besteirol como o americano no centro da narrativa do jovem indo à Europa para se descobrir, e no horror do filme, na espécie de fetiche dos clientes-torturadores que buscam, justamente, matar jovens americanos. Assim como, nessa vocação, está também o que é alheio tanto ao besteirol, quanto ao horror: qualquer noção de “realismo”, de um mundo social baseado no que o telespectador lê como verossímil, palatável; muito pelo contrário, o filme gerou respostas e críticas de governos da Eslováquia e a da República Tcheca pela sua falta de prestação conta com o que chamam de “realidade”. Roth constrói o mundo próprio sem contas a pagar com qualquer noção fora do filme do que seria a realidade social – só aí, então, temos um filme que de fato passa a se dedicar ao que é central para ele, o jovem americano frente ao mundo de 2005.

O próprio torture porn no início dos anos 2000 sugere uma explosão violenta que aparece no imaginário norte americano pós-11/09, exportado para o resto do mundo, e de tudo que acompanhou a invasão ao Iraque: o medo do estrangeiro, um terror inconsciente do outro, a violência como resposta e a imagem jornalística que reitera repetidamente uma violência, seja do atentado, seja da guerra, seja do que os soldados estavam fazendo na
guerra. O torture porn, principalmente os filmes norte-americanos, surge trazendo esse medo inconsciente e até mesmo o trauma pelas imagens de violência como uma nova trope para o cinema de terror. Seus filmes passam a buscar uma replicação desse magnetismo, entre o fascínio e a repulsa, da imagem jornalística, um olhar que quer escapar da representação gráfica, mas incapaz de fugir dessas imagens. Esse magnetismo é uma possível explicação para a longevidade da franquia Jogos Mortais, mas também um ponto de partida de Hostel. Principalmente em sua ligação com a ideia da ‘tortura’ no imaginário estadunidense após a divulgação das imagens da prisão de Abu Ghraib, com militares americanos sorrindo em frente a iraquianos mortos, presos, apanhando, sendo eletrocutados, abusados sexualmente e moralmente.

Há um horror evidente nas imagens vazadas para a imprensa, são sessões claras de torturas – mas os militares parecem estar se divertindo frente às situações explícitas. Um ambiente degradante, com atos que variam entre o humilhante e a extrema violência, e o americano uniformizado apenas ri. Essas imagens eram replicadas à exaustão pela imprensa diretamente para o americano médio – o mesmo que participara de um apoio maciço à invasão ao Iraque e que sofre agora um choque de realidade. O fascínio por essas imagens pode não ser o mesmo que caminha ao lado da repulsa nos Jogos Mortais, mas Abu Ghraib estava por todos os lados. Como um se relaciona com essas imagens? Hostel não tenta responder, pois explora justamente como o filme e como o telespectador se relaciona com esse novo mundo aberto a partir dali.

A conexão entre os dois filmes da série e a tortura militar se inicia na própria ambientação, com as sessões de torturas acontecendo em complexos industriais abandonados, ambiente degradado da periferia capitalista, como as próprias prisões iraquianas. Partindo dessa superfície, a primeira impressão é de Roth encenar uma fantasia de inversão: os torturados agora são os americanos, agindo contra sádicos estrangeiros, quase como uma vingança do resto do mundo contra nossos pobres heróis, estadunidenses mesquinhos. Mas as dinâmicas se aprofundam com o passar do primeiro filme e principalmente de sua continuação. O próprio choque entre o besteirol e o horror, onde há um contraponto entre a vida norte-americana modelo, do americano como centro do mundo, na comédia, e a morte violenta e explícita, inexplicável, da sessão de tortura, propõe uma exposição crua de uma realidade subterrânea que vêm à tona da maneira mais direta possível. Podemos falar de um “choque de realidade” que surge também para os personagens, mas uma realidade que não é, necessariamente, realista, mas sim aquela sádica do filme de horror. Ao chegarem no hostel do título, na Eslováquia, os personagens vão ao quarto e se encontram no paraíso: as colegas com quem irão dividir o quarto, nuas e desinibidas, flertam com eles e os convidam para um spa. Já na segunda metade do filme, nosso final boy, após o desaparecimento de seus dois amigos, sabendo que tem algo de errado, retorna ao quarto e encontra a exata mesma situação, mas com outros rostos femininos. A repetição do momento, e principalmente da mesma imagem, apresenta a horrível possibilidade para o protagonista: seria tudo uma mentira? O besteirol, o sonho juvenil, até mesmo a transa que tiveram na outra noite. A sua noção de realidade, sua visão de mundo, se desmorona perante a imagem repetida, perante a dúvida que surge ali. “Califórnia? Você está tão longe de casa…” diz o policial que, envolvido com as torturas, não irá investigar os desaparecimentos.

A suspeita, e uma espécie de descrença, leva nosso protagonista à fábrica em busca do seu amigo, onde acaba também capturado. Posteriormente, ele finalizará sua jornada com uma corrida por sobrevivência, explorando ao máximo o ambiente industrial degradado do complexo. Não é uma fantasia de inversão porque no cerne do conceito de uma final girl (boy, aqui) é que a audiência irá torcer por ela, como torcemos em Hostel, sem o gozo pela inversão nos papeis de tortura feita pelo filme. O que é algo que se repete em Hostel: Part II, de 2007, em que as protagonistas são todas mulheres: os filmes não estão simplesmente matando seus americanos unidimensionais, mas sim os fazendo encarar o resto do mundo.

Esse mundo de Roth é igualmente o da indústria desolada usada para torturas subterrâneas e do medo do próximo, mesmo que ele seja invisível. O mundo de Abu Ghraib, da imagem jornalística violenta, e, principalmente no segundo filme, da ficção, na qual há um universo e uma série de personagens e rostos que participam dos processos da empresa que vende as torturas. Funcionários do Hostel, as mulheres (e homens) que irão seduzir os protagonistas, a polícia, os guarda costas, moradores eslovacos, até o caso extremo de uma gangue de crianças que, agindo como milícia, se dedica a extorquir dólares e chicletes de turistas e participa do ecossistema. Se o besteirol é baseado em ter controle de toda a ficção, de dobrá-la conforme a visão de mundo de nossos protagonistas, aqui eles encontram um mundo fora de seu controle.

Em Hostel II, há nova ramificações desse mundo pela exposição de funcionamento da organização: vemos as protagonistas serem leiloadas para os tipos mais endinheirados do planeta, acompanhamos os torturadores saindo de suas vidas pacatas e fazendo a viagem, como qualquer outra de negócios, para a Eslováquia. Capitalismo em 2007: o terceiro mundo que fornece tudo o que pode para o topo da cadeia produtiva. Agora também acompanhamos os torturadores durante todo o filme, em paralelo às universitárias que estudam na Europa pelo verão, e vemos o ponto de vista deles – apenas um degrau acima do turismo sexual que os amigos, um de personalidade dominante e outro que tem dúvidas em de fato participar do ato, estão acostumados. No fim, a cadeia se completa: toda a produção de jovens a serem torturados, desde o convite para a Eslováquia, a multitude de pessoas envolvidas na eventual captura, até sua venda, tudo para encontrar o seu consumidor, o homem ressentido, o milionário entediado.

Sobra, então, a força motriz por trás dessa cadeia produtiva – uma força motriz para os próprios filmes. Em Hostel II uma noção de poder está por toda parte. O amigo que
comprou a tortura fala à exaustão sobre como se sentirá superior aos outros após ter pago para matar alguém. E claro, que alguém tem de ser uma mulher, preferencialmente atraente e mais jovem. Logo, poder abstrato, econômico e de gênero, que se manifesta no total controle sobre a vítima da tortura. Já em Hostel I há um torturador que fala sobre o sonho jovem de ser cirurgião, mas sofrer com tremedeira nas mãos, eventualmente indo para o bussiness (assim como mais cedo, antes de se revelar um torturador, comenta como, apesar de aparentar ser homossexual, escolheu ter uma família), tendo como centro uma espécie de frustração profissional e pessoal dentro do mesmo sistema. Passa a existir, dentro das práticas de cada torturador e da própria organização, a materialização dessa hierarquia abstrata de poderes do mundo globalizado do capitalismo tardio.

Algo que retorna com a reviravolta e a salvação da final girl do segundo filme: é
mencionado brevemente o fato da protagonista ter uma fortuna que foi deixado para ela por sua mãe. Há uma piada ou outra sobre ela se sustentar e sustentar também seu pai e logo o fato é esquecido. No momento final, porém, o dinheiro ressurge como salvação. Ela pode pagar mais do que seu torturador pagou – respeitando as regras de um leilão. Um detalhe, porém: ela estava comprando o corpo de seu torturador, logo, precisará participar do jogo, entrar no sistema. Nos dois filmes é mencionado que os torturadores tatuam o símbolo da organização antes de participar da tortura – nossa final girl então, encerra a cadeia produtiva cortando fora o pênis de sua nova aquisição e ordena que o deixem sangrar até morrer, partindo para fazer a tatuagem e viver para sempre à sombra do que se esconde por trás de fábricas abandonas – aquilo para o qual teve que se vender para ter qualquer chance de sobrevivência.

Talvez a máxima do besteirol, em que o jovem americano vive seu coming of age, crescendo frente ao mundo, aos seus amigos e a si mesmo, ainda esteja ali. Mas no mundo imperdoável da periferia do capitalismo, do corporativismo, das masculinidades e do poder concentrado na mão de poucos – na mão do filme de horror – a única oportunidade de crescimento é a fuga desenfreada ou a venda do seu espírito, sozinho após perder todos a sua volta para esse novo mundo que surge do subterrâneo para os relembrar do que, no fim, estava sempre ali, sempre existiu e, a todo momento, pode tomar conta de toda a sua existência. A imagem de um horror que existe em um mundo onde não se tem no que confiar, do medo do invisível que pode estar coabitando a todo instante ao seu lado. Expondo uma lembrança daquela realidade para fora da sala de cinema, com todas suas ansiedades e falhas, ao passo que cai em um buraco é particular à própria realidade, à própria ficção. Dois mundos que não são os mesmos, mas que se encontram suas semelhanças a partir do embate um com o outro.

*Luiz Eduardo Kogut é formado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná e escreve sobre cinema desde 2017, mesmo ano em que começou a trabalhar com a realização de filmes experimentais. Se interessa especialmente pela exploração das possibilidades da forma cinematográfica e pela relação histórica colocada entre cinema, arte e política. Publica seus textos em seu perfil do Letterboxd e em seu blog pessoal, assim como seus curtas-metragens foram exibidos em festivais como o Festival Ecrã, também estando disponíveis em seu canal do YouTube.