Momentos de crise e limitações costumam impulsionar a arte a se reinventar com criatividade. Longe de querer idealizar as dificuldades, a ideia de que os realizadores podem encontrar soluções inventivas pode confirmar um papel de crítica social e uma capacidade de superar obstáculos de produção. Esses aspectos recobrem “Voltei!”, uma distopia que imagina o Brasil em 2030 e se foca nas irmãs Alayr e Sabrina enquanto ouvem num radinho de pilha o julgamento do presidente. Além disso, elas são surpreendidas pela chegada de Fátima, a irmã que julgavam estar morta.

A obra, dirigida por Ary Rosa e Glenda Nicácio, está disponível no CineFantasy. Os dois cineastas dialogam diretamente com o contexto atual de um Brasil vitimado em larga escala pela pandemia do coronavírus e pelo desgoverno de Jair M. Bolsonaro iniciado em 2019; além de se relacionar com o curta-metragem “República” de Grace Passô. Se o curta explorava os diferentes Brasis existentes, porém suprimidos, dentro de um todo maior, o longa projeta a devastação já em curso na nação que pode se intensificar com o tempo se nada mais substancial for feito. Logo, é interessante notar como a narrativa apresenta calmamente seu universo distópico: Sabrina acende velas e lampiões de uma casa sem luz e escreve palavras num quadro, como ditadura, medo, moralismo e violência, enquanto a narração em voice over conta como o Brasil se tornou a “República do Disparate” autoritária, moralista religiosa e repressora.

Com a chegada de Alayr, podemos localizar ainda melhor que país é esse: a recém-chegada aparece de máscara para se proteger de um vírus, a casa de sua família não tem energia elétrica em razão de um longo “apagão” em quase todo o território e as duas irmãs comentam sobre as altas taxas de desemprego, a inflação e a perseguição do governamental a artistas. Enquanto elas escutam o julgamento no Superior Tribunal para a condenação ou não do presidente, a interação entre elas é um suspiro de alívio diante de questões tão duras porque se baseia no humor de uma comédia de costumes – Alayr é uma delegada e conta vários “causos” de sua rotina de trabalho, como o roubo de uma dentadura e uma briga entre marido, esposa e amante, repletos de vocabulários e expressões populares coloquiais de uma sabedoria muito peculiar.

Minutos depois, a chegada de Fátima desencadeia mais possibilidades para a convivência familiar de pessoas que tiveram suas vidas atacadas pelo autoritarismo político do país. Alayr e Sabrina se espantam com a aparição da irmã mais velha, pois acreditavam que sua prisão pelo governo teria levado ao seu assassinato e desaparecimento do corpo. Para explicar o que havia ocorrido, Fátima conta como a repressão do Disparate perseguiu e torturou artistas, sendo ela própria uma vítima por contar uma canção crítica ao presidente. O passado dessa família também incluiu o assassinato da mãe na década de 1970, acusada injustamente de ser “subversiva”, e a ida das três irmãs para uma residência onde cresceram sendo escravizadas. Não por coincidência, tais formas de violência não se esgotam na ficcionalidade, pois ressoam nas práticas do governo Bolsonaro avessas à arte e celebradoras da ditadura militar.

Em outras dimensões, a dinâmica das três personagens reafirma escolhas estéticas e dramáticas do filme. A política também aparece na decisão de ter Arlete Dias, Mary Dias e Wall Diaz, três atrizes negras que ajudam a destacar a necessidade constante de maior representatividade no cinema. A mise-en-scène de Ary Rosa e Glenda Nicácio se diferencia de seus trabalhos anteriores em “Café com Canela” e “Até o Fim”, nos quais a liberdade dos espaços era uma marca registrada, para investir em situações passadas em uma única locação com um elenco reduzido. E, apesar das dores do presente e do passado, Alayr, Sabrina e Fátima encontram refúgio uma na outra a partir do afeto compartilhado, seja quando Fátima canta tocando violão, seja quando conta sobre seu caso com o governador local.

Utilizar um único cenário e decupar as cenas com enquadramentos que priorizem os diálogos não são escolhas que impedem a concretização das ideias através da linguagem audiovisual. Os cineastas recorrem a closes das personagens em momentos em que possuem monólogos altamente sentimentais (a confissão de Alayr sobre algo que se arrepende, o relato de Fátima sobre a violência que sofreu e a análise de Sabrina sobre a conjuntura histórica). Mais adiante, eles dividem a tela em três segmentos para deixar as três mulheres desabafarem simultaneamente que o Brasil machuca. Há ainda a poética fusão de imagens sobrepostas na cena em que Sabrina experimenta morder o violão enquanto Fátima toca uma música – todos esses são exemplos de como a estética potencializa a demonstração de sentimentos e afetos entre elas.

Isso é ainda mais importante quando o julgamento dos crimes do presidente (semelhanças com uma CPI da Pandemia em 2021?) transmitido pelo rádio ganha mais destaque. A princípio, seria uma acontecimento capaz de provocar revolta diante do risco de tudo acabar em pizza com o arquivamento do processo, mas os rumos da votação dos ministros surpreendem – por si só, já é uma experiência singular ouvir os sobrenomes dos ministros (em referência a figuras reais, como Leonel Brizola, José Sarney e Paulo Maluf) e especular sobre seus votos. Com o passar do tempo, o resultado final se torna uma catarse, filmada de modo poderoso como um grito entalado que se expande e ganha o mundo. Assim, se o Brasil machuca, os afetos entre as pessoas podem ter efeitos curativos; se o filme começa como uma distopia para um período de autoritarismo e negacionismo, ele termina como o desejo de um país que enfrente seus erros e puna seu(s) genocida(s).