O arquétipo da mulher-monstruosa tem sido trabalhado no cinema de horror desde seus primórdios. Talvez possamos dizer que ele tenha tido seu início com A Noiva de Frankenstein, mas tal figura da mulher como monstro já estava sendo trabalhada em filmes de outros gêneros, apesar de não possuírem a mesma característica óbvia que encontramos nos de horror. Embora esse arquétipo esteja sendo desconstruído ultimamente em produções onde podemos ver a mulher-monstruosa como alguém complexa ou, ainda, a mulher não como monstro, mas como heroína, é interessante olharmos para obras que lidam com essa visão da figura feminina no terror.

Uma das que mais me chamam a atenção é The Hunger (1983). O filme, protagonizado por Catherine Deneuve e David Bowie, é uma releitura poética do mito dos vampiros. Mas, para além disso, ele traz alguns pontos interessantes que não vemos tão abertamente em outros filmes com a mesma temática da época. Deneuve interpreta Miriam Blaylock, uma mulher fina, elegante e distinta que, secretamente, vive há pelo menos dois mil anos. Jovem e bela desde o Egito antigo, Miriam já viveu várias vidas e na década de 1980 é ao lado de John (David Bowie) que ela vive como uma professora de música. Há 200 anos a seu lado, John é um vampiro extremamente erótico, mas comandado por Miriam: ele seduz, se alimenta e mata, mas somente com e por ela. As situações eróticas desse filme são muitas, mas todas são centradas na figura da vampira original. Mesmo nos momentos mais sexuais de John, é em torno de Miriam que a atividade se desenrola. Mas o contrário não acontece com ela. Seu prazer é dedicado a si mesma, e não a ele. Não existe uma cumplicidade real entre ambos, apenas uma relação de dependência. Miriam não gosta de estar só e escolheu John como parceiro, na França do século XVIII, porque ele é talentoso e bonito. Mas John verdadeiramente ama Miriam e dela depende.  

Essa dinâmica é típica da mulher-monstruosa. Sendo dominante, ela subverte a narrativa de vítima, tornando-se a razão principal para a ação. A postura de liderança é geralmente associada à mulher-monstruosa. Como diz Barbara Creed, em The Monstrous-Feminine“A vampira é abjeta porque ela rompe com a identidade e a ordem; dirigida por sua sede de sangue, ela não respeita a lei que estabelece as regras da conduta sexual apropriada. Assim como o homem vampiro, a mulher também representa o abjeto porque ela transpõe a barreira entre o vivo e o morto, o humano e o animal”. No homem-monstro, o abjeto está no sobrenatural: ele vive estando morto, ele quebra as leis divinas, ele não deveria existir. Na mulher-monstruosa, encontramos uma quebra que vai além, pois é também – e principalmente – sexual: ela toma posse do que é seu sem pedir licença para ninguém, ela é dona de sua sexualidade e de seus desejos, ela explora os caminhos que decide e esse é o fator causador do medo e do estranhamento. A vampira de Deneuve é uma das maiores representações dessa figura no cinema de língua inglesa já que é ela a sedutora, é ela a dominadora, é ela a monstruosa.  

Com o enfraquecimento de John, vemos agora a dra. Sarah Roberts (Susan Sarandon) entrar em cena. Ela, apesar de humana, também inicialmente quebra estereótipos de mulheres no cinema de terror por ser uma mulher tida como monstruosa ao natural. Sua relação com seu namorado e com colegas de trabalho é difícil, já que ela é vista como uma mulher difícil por ter pensamentos próprios, vontades e um cargo de alto comando. Ao travar contato com John, já chegando à velhice em poucas horas (numa maquiagem impressionante), ela conhece Miriam, a vampira sedutora. É interessante perceber como a dinâmica do relacionamento entre Miriam e Sarah é diferente daquele entre Miriam e John. Enquanto ele é subserviente ao ponto da quase adoração, Sarah se impõe, não permitindo que seu desejo a controle. Ela deseja Miriam e mantém relações sexuais com ela, mas ela deseja mais a própria liberdade. Portanto, ela também só poderia ser uma mulher-monstruosa, tomando o lugar da primeira enquanto Miriam é atormentada por todos os seus ex-amantes vampiros cujos corpos – ainda vivos, porém sem forças para agir – ela mantém selados em pesados caixões.  

Existem diversas representações da mulher-monstruosa no cinema, mas é dentro da mitologia vampírica que ela ganha real poder para subjugar outros conforme sua vontade. O gótico, enquanto gênero literário, possui sua excelência em histórias onde a mulher é o centro narrativo porque a figura do Mal vem de dentro. The Hunger é um filme essencialmente gótico, tanto no visual (o gótico musical dos anos 1980) quanto em sua linha narrativa. Existe uma história dentro de uma história dentro de uma história, característica do romance gótico, sendo que a maior delas é a da aceitação dos desejos e da culpa pelas consequências que eles trazem. Ainda que haja prazer, não é possível livrar-se de seus mortos, pois o Mal vem de dentro e atormenta a consciência.  

A monstruosidade da mulher enquanto vilã sobrenatural é interna, vem de sua própria consciência pela culpa que sente por não ter seguido o padrão pré-ordenado de comportamento feminino. Enquanto isso, para o público, o Mal surge na forma da figura de Miriam e, posteriormente, de Sarah, que utilizam da sexualidade para enganar jovens e possuírem amantes para, egoisticamente, não passaram a eternidade sozinhas. Não vemos tal recurso narrativo de profundidade psicológica em homens vampiros do cinema naquela época. Drácula matava porque desejava sangue, e isso bastava. Miriam seduzia jovens porque não queria passar a eternidade sozinha, ainda que isso trouxesse sofrimento ao parceiro, o que a corroía por dentro. Essa explicação mais detalhada pode ser vista em diversas obras que possuem mulheres-monstruosas, pois parece ser proibido que uma mulher seja  ou pratique atos de horror sem que exista uma grande justificativa por trás. Nisso podemos ver como a mulher-monstruosa costuma ser mais psicologicamente profunda do que o homem-monstruoso. Para ela, é preciso haver justificativas psicológicas e aprisionamentos psicológicos morais para seus atos, enquanto a ele é dada a simples justificativa de fazer o dando porque quer fazê-lo. É uma questão de gênero, afinal de contas.