Daniel Medeiros*
Resumo: O objetivo desse artigo é observar as semelhanças e as diferenças entre as duas versões de Cat People, identificando o contexto em que cada obra foi produzida e como tais similaridades e diferenças se relacionam com as temáticas pertinentes à época das suas produções.
Introdução – partindo do mesmo ponto
Lançado em 1942, Cat People, ou Sangue de Pantera como ficou conhecido no Brasil, é uma produção de terror dirigida por Jacques Tourneur e produzida por Val Lewton. Já o seu remake chegou aos cinemas 40 anos depois, com o título nacional A Marca da Pantera e direção de Paul Schrader. Ambos os filmes partem da mesma premissa: uma jovem, virgem, chamada Irena se muda para a cidade grande. Lá, ela se apaixona e inicia um relacionamento com um homem chamado Oliver. Porém, ela teme que a consumação desse amor liberte uma antiga maldição do seu povo, fazendo-a se transformar em um enorme felino.
Existem diversos pontos de convergência entre as duas obras. Um deles é a presença de um zoológico que desempenha função essencial na narrativa. Há ainda a figura de uma mulher misteriosa, e de aparência felina, que se aproxima da protagonista em determinado momento e a chama de “irmã”. Além disso, sequências inteiras também são apresentadas de maneira idêntica, como o momento em que a amiga de Oliver, que claramente nutre um sentimento amoroso por ele, é perseguida através de ruas escuras pela esposa ciumenta.
Apesar das semelhanças, as duas obras são bastante distintas entre si, especialmente na maneira como abordam o tema do sexo
Direções opostas
Insinuações sexuais são frequentes em Sangue de Pantera. Desde o momento em que Irina convida Oliver para subir para seu apartamento (apenas para tomar um chá), passando pela cena em que os dois aparecem deitados, relaxados, apreciando o ar noturno (como se tivessem acabado de fazer amor), e culminando no desejo explicitado por Irena de “ser a Senhora Reed de verdade”, o filme movido por um desejo sexual nunca concretizado. Diante da sua impossibilidade de consumar o ato (afinal, um mero beijo já seria capaz de transformá-la em uma criatura sanguinária), Irena deixa que sua própria frustração sexual dê lugar ao sentimento de ciúmes. Ou seja, a ciúme se torna a sua força transformadora.
Já A Marca da Pantera é muito mais explícito. O filme é repleto de cenas de nudez e de sexo. A obra também muda algumas regras. Agora, o desejo sexual ou o ciúme não são suficientes para gerarem a transformação; apenas o ato sexual propriamente dito a causa. E para reverter a transformação, é preciso matar alguém, ou a pessoa ficará presa para sempre na sua forma animal.
Além da mudança no funcionamento da maldição, no remake Irena tem um irmão que também partilha do mesmo mal que a aflige. A presença desse irmão altera a dinâmica da história, visto que a transformação felina deixa de ser uma questão exclusivamente feminina para ser uma questão familiar. Já o tema da sexualidade ganha uma nova conotação de complexidade ao ser adicionada também a temática do incesto. Afinal, dentro dessas novas regras, a única maneira de as pessoas afligidas com esse mal poderem liberar seus desejos sexuais sem se transformarem é se fizerem sexo entre si.
Com isso, ficam evidentes as maiores diferenças entre as duas obras. Enquanto uma priorizava a sugestão, a outra é muito mais explícita. Enquanto em uma o desejo sexual é suficiente para causar a transformação, na outra é a satisfação desse desejo que causa a mudança. Ou seja, a repressão sexual, na década de 1940, não era suficiente para frear o avanço da ameaça, enquanto na década de 1980 essa mesma repressão é vista como a única salvação dos demais personagens.
Diante dessas diferenças, cabe analisarmos o contexto em que os filmes foram realizados.
O terror dos anos 1940 vs o terror dos anos 1980
Sangue de Pantera foi produzido numa época em que o cinema de terror não estava interessado em assustar. A guerra já causava medo suficiente. Não por acaso, os grandes monstros do estúdio Universal, que aterrorizaram toda uma geração na década anterior, perderam seu impacto e acabaram migrando para a comédia, em filmes como Às Voltas com Fantasmas (Bud Abbott and Lou Costello Meet Frankenstein, 1948). Havia, portanto, uma lacuna de produções de gênero que refletissem o lado mais sombrio da humanidade, em vez de ignorá-lo.
Essa lacuna foi preenchida pelo produtor Val Lewton, que assumiu a divisão de terror do estúdio RKO. Causando uma verdadeira revolução no gênero, o produtor realizou uma série de filmes extremamente influentes, como A Morta-Viva, O Homem-Leopardo e Sangue de Pantera. Em comum, essas obras se caracterizaram pela sua sugestividade. São filmes em que o terror não é explicitado, mas escondido. Filmes em que cabe ao espectador preencher as lacunas propositalmente deixadas pelos realizadores.
Não só isso, mas os filmes de Lewton costumavam abordar temas pouco explorados pelo gênero. Conforme mencionado antes, Sangue de Pantera é, em sua essência, um filme sobre repressão sexual e sobre como essa repressão se manifesta de maneira incontrolável. A verdadeira vítima, portanto, não é a pessoa atacada, mas aquela que é forçada a atacar por conta de uma condição que está além do seu controle.
O tema da repressão sexual só entrou em evidência nas décadas seguintes, principalmente por causa da revolução sexual, que atingiu seu ápice na década de 1960. Depois disso, o cinema se sentiu mais “à vontade” para tratar de temas que Val Lewton já abordara décadas atrás.
É fácil entender, portanto, porque A Marca da Pantera trata da temática sexual de maneira mais explícita. Não apenas o filme foi feito numa época em que sexo já havia deixado de ser um tema tabu (e passou a ser explorado extensamente pelo terror), mas ele foi produzido após o fim do Código Hays, um código de conduta que regeu Hollywood por mais de três décadas e que proibiu o uso de diversas temáticas, incluindo sexo e violência. Após o fim do Código, o cinema de terror ficou muito mais brutal e muito mais explícito. Aquilo que antes era apenas sugerido passou a escancarado para o espectador.
Conclusão – finais diferentes
As diferenças também são notáveis na maneira como cada filme encerra sua narrativa. Enquanto em Sangue de Pantera, a protagonista morre, em A Marca da Pantera ela fica para sempre presa na sua forma animal, domada dentro do zoológico onde seu namorado trabalha. Tais finais são significativos de maneiras distintas. Pois se a morte de Irena representa o resultado trágico de décadas de repressão sexual, seu aprisionamento no remake representa um alto grau de moralismo, pois mostra como a sociedade é incapaz de aceitar a liberdade sexual, e prefere, em vez disso, puni-la. A punição do sexo, por sinal, é um tema recorrente dentro do terror da década de 1980 (assassinos como Jason Voorhees, Michael Myers e Freddy Krueger tinham a tendência a priorizar jovens sexualmente ativas).
Esse talvez seja o maior ponto de divergência entre as duas obras. Enquanto o original foi contra as temáticas regentes na sua época, o remake navegou na onda da sua. Em outras palavras, Sangue de Pantera antecipou muitos dos temas que se tornaram vigentes depois, e A Marca da Pantera apenas refletiu o que já estava sendo feito. É por isso que A Marca da Pantera é um bom filme de terror, mas Sangue de Pantera é um verdadeiro clássico, um filme que, nas palavras de Martin Scorsese, foi “tão importante quanto Cidadão Kane para o desenvolvimento de um cinema americano mais maduro”.
*Daniel Medeiros é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e pesquisador sobre o cinema de terror. É graduado em Cinema e Vídeo, mestre e doutor em Ciências da Linguagem. Seu objeto de pesquisa é o cinema de terror contemporâneo.