Diego Stevan Lopez*

Muitas pessoas conhecem Stephen King por seus trabalhos mais voltados aos horrores dos  subgêneros clássicos, e é inegável que o escritor goza de talento, principalmente, quando o assunto  é entreter as massas sobre os mistérios e perigos de um mundo para além do conhecido e  cientificamente validado. Este ensaio, no entanto, vai por um outro caminho, analisando contos e  estórias sobre um tipo de gênero pouco conhecido, ou até mesmo difundido com a nomenclatura  errada, conhecido como horror social. Os mais conservadores alegarão que é ao drama, a que me  refiro, talvez, por não compreenderem, ou se encontrarem, verdadeiramente, anestesiados para o  quão assustador o mundo real e os desdobramentos de algumas questões humanas possam ser, ao  despertar em nós sentimentos muito mais negativos e diversos que de contos sobre monstros  imaginários, que sabemos não existir.  

É sabido, ao menos pelos céticos, que criaturas fantásticas são elementos culturais criados para  justificar, em parte, a ausência de sentido, que nossos antepassados experimentaram, durante  séculos, ao defrontar-se com a alteridade, interpretada quase sempre como um “Grande mal”,  praticada voluntariamente ou não, por aqueles dentre nós que desafiavam o senso comum  predominante ao vilipendiar leis, costumes e crenças, ou apresentada em situações naturais, carentes de reposta objetiva. Em suma: As diferenças culturais extremas, a incompreensão de fenômenos  físicos destruidores, as doenças mentais sem diagnóstico correto, divergências religiosas,  divergências politicas, ignorância sobre assuntos científicos diversos, racismos de todos os tipos,  inconformismo diante da morte, pragas, pandemias e uma série de outros fatores, que seria  exaustivo enumerar, tudo era objeto de uma resposta ficcional correlata. O importante mesmo, aqui, é demarcar bem claramente que o “mal” está dentro daqueles que o criaram e conferiram  significado a esta palavra, tão amplamente difundida quando o assunto é horror, ou de modo bem  claro: Nós somos os monstros do real e a fonte de inspiração para o universo fantástico do medo. 

“Quatro estações” é talvez o livro mais significativo que o autor americano já tenha escrito, pois  elabora alguns temas que são amplamente ignorados quando não nos afetam diretamente, mas nem  por isso deixam de ser aterrorizantes quando, desafortunadamente, nos encontramos envolvidos em  algum deles: A prisão, o autoritarismo, a violência cotidiana imperceptível e o olhar de indiferença  dos mais abastados para com nossas agruras e sofrimentos, tais assuntos, rotineiramente, tratados  com leviandade pela sociedade, mas com poder de obstruir e deformar nossa parca compreensão  sobre o fenômeno da liberdade, minam nossas capacidades de enfrentá-los apropriadamente, o que  permite que seus efeitos deletérios sejam sentidos, mesmo que indiretamente, por toda parte, ao  longo da história. 

O próprio King, como se lê, em algumas edições em que há o posfácio, alega que não pensou o  livro como tendo uma temática única, ou mesmo ligada por algum elemento filosófico, político, ou  de qualquer natureza, mas, que eram contos, cuja motivação em escrevê-los surgia, principalmente,  após terminar romances, encomendados por grandes editoras. No entanto, este ensaio, como é  próprio de trabalhos realizados similarmente, age no sentido de demonstrar que mesmo um autor  sem um propósito especifico, bem delineado, pode trazer elementos em suas histórias que  conversam entre-si, o que permite a quem se aventura a fazer alguma análise, se não encontrar  alguma motivação primordial que seja autêntica do escritor, ao menos a possibilidade de criar um  mapa mental interessante sobre alguns simbolismos esparsos que habitam determinados trabalhos. 

Os contos “Rita Hayworth e a Redenção de Shawsank”, “Aluno inteligente”, “O corpo” e “Método  respiratório” abordam, cada um a sua maneira, alguns aspectos do “mal” e do “horror” em seu  estado mais puro, que é dentro dos corações e mentes de cada um de nós.  

 “Rita Hayworth e a Redenção de Shawsank”: As dificuldades de se vencer “O homem-instituição” 

Kropotkin, pensador anarquista do século XVIII, em seu manifesto “As prisões”, talvez seja quem  melhor sintetizou críticas ao sistema carcerário humano, de forma clara e objetiva, sem rodeios,  apresentando problemas que não foram solucionados nos últimos duzentos anos desde sua  publicação. Ideias tão claras que outros autores, que tiveram o dissabor de passar pela mesma  experiência, como Oscar Wilde, Graciliano Ramos, Alexandre Dumas e Henri David Thoreau  compartilham similaridades entre suas críticas e as do idealizador anarquista. 

A discussão mais, extraordinariamente, clara do conto é apresentada pela perspectiva de Red, que  percebe que, assim como outros antes dele, o tempo encarcerado tirou-lhe as habilidades de viver  em sociedade, transformando-o num “homem-instituição”, incapaz de viver plenamente a liberdade  fora dos muros de Shawsank, já que habituara-se a receber ordens e viver sobre a constante  vigilância dos agentes estatais, criando uma reputação dentro de suas paredes, que incluía um certo  medo e respeito de outros aprisionados, mas que do lado de fora, no mundo dos libertos, nada  significava. Andy lhe apresenta uma nova perspectiva, sobre ir embora para uma cidade no México,  a beira mar, mas ele, inicialmente, de maneira niilista diz que qualquer um poderia substitui-lo no  que Dufresne oferecia, pois já não se permitia sonhar, após ter envelhecido atrás das grades,  duvidando grandemente de seus talentos fora dali, enquanto o protagonista, como uma verdadeira  contraparte, passou o tempo todo em que estava preso se fixando na ideia de que era melhor que  tudo aquilo que o rodeava. Todas suas incursões nos trabalhos da prisão foram iniciativas para  melhorar sua própria condição de encarcerado, bem como a situação de seus colegas presidiários,  ou seja, ele não se deixou abater pelo constatado por Kropotikin em seu texto, quando alega: 

“A prisão não coibe atos antissociais, pelo contrário, aumenta seu número. Nâo reabilita quem  prende, podem reformá-la o quanto quiserem, será sempre uma privação de liberdade, um sistema  falso, como um convento, que torna o prisioneiro cada vez menos apto a vida social” 

Andy, como Red constata posteriormente, talvez seja aquela pessoa que tem um caráter tão sólido,  somado a uma perseverança e resiliência só igualável a da natureza que, calmamente, esperando  assentar, camada após camada de sedimentos, durante milhares de anos, consegue formar uma  pedra, o que se justifica pela resolução do conto, quando percebemos que o desfecho era algo  pensado desde o começo da vida na prisão e, mesmo assim, precisou de décadas para ser posto em  andamento. Isso, talvez explique porque Dufresne colecionava algumas rochas e as esculpia. Aquela coleção de quartzos, dentre outros materiais, estão ali como uma mensagem implícita de que aquele  detento não será moldado pelas circunstâncias, mas ele que adequará as situações, com paciência e  perseverança, a sua própria vontade. A vida na prisão é dura, mas Andy sempre tem alguma carta na manga, sempre esperando o momento mais propício, trabalhando como um artesão aquela realidade violenta e tornando sua vida um pouco menos insuportável, ao mesmo tempo em que está mirando  no futuro longe dali.

Desnecessário dizer que Focault é uma sumidade intelectual sobre a realidade dentro dos presídios,  ele acertadamente diz, por exemplo, que o objetivo de todo controle estatal relacionado ao assunto é “docilizar os corpos”, ou seja, “Quem controla o corpo, controla o espírito”, mas como escreveu  King, nem todos os que estão sujeitos ao controle escolherão docilizar-se. 

O “homem-instituição” não é uma lenda, mas uma realidade do cotidiano. Conheci pessoas, com  quem dividi um tempo da minha adolescência, que eram pensadores originais, escreviam estórias  encantadoras, músicas e poesia, além de me divertirem muito com seu senso crítico incomum, no  entanto, com as dificuldades que se multiplicam na vida de pobres e vulneráveis, acabaram optando  

por uma saída muito conhecida dos brasileiros que é prestar concurso público e, no caso destes, para um cargo na segurança pública. Desnecessário dizer que mudaram. Hoje, mal os reconheço. Estão  todos inflamados daquele tipo específico de controle estatal mental, que é o assunto do segundo  conto do livro, ou em outras palavras, quando se ultrapassa a fase do “homem-instituição”, para  finalmente resultar no “homem-replicador”.  

“Aluno inteligente”: Para além do ‘’homem-instituição’’, ou o “homem-replicador” ,agente  intencional dos instrumentos de violência. 

Nem todos os homens são como Andy Dufresne. A grande maioria acaba cedendo as imposições das instituições, mas há aqueles que mesmo fora do horário de trabalho, ou mesmo sem que alguém os  vigie, criaram uma extensão dos aparatos de violência, intolerância e vigilância dentro de si. Os  motivos parecem ser variados, como o são sempre na vida humana: Desde insegurança sobre suas  próprias capacidades, medo do diferente (que podem incluir racismos e preconceitos diversos),  insegurança sobre sua própria sexualidade, sentimentos de solidão ao professar algo sozinho, em  contraposição ao conforto de pertencer a um grupo grande e popular, fanatismo religioso que bate  frontalmente com ideologias divergentes ou mesmo fatos técnico-científicos, mas, tudo isso, de  maneira geral, se fossemos resumir, ficaria melhor definido por conta do termo “medo”, em um  sentido, verdadeiramente, amplo. Um animal acuado, na natureza, é um perigo que não pode ser  ignorado e, por vezes, o ser humano sente-se assim, pois a pressão social é tanta para ele, que não  resta muitos lugares para onde fugir a não ser esconder-se atrás do manto da violência, travestido de “valores-desculpas” como “justiça”, “religiosidade”, “orgulho-hétero”, “defesa de valores  tradicionais”, “defesa de valores liberais” e muito outros, tudo para evitar entender uma nova  realidade que discorda das coisas que ele foi ensinado a valorizar e defender e, principalmente, pelo  temor de ser menosprezado no ambiente que se avizinha. Isto posto, King acerta em cheio ao  escrever sobre um rapaz iniciando a adolescência, uma fase cheia de medos, dúvidas e curiosidades, em contato com um velho militar nazista, escondido no território americano. 

 Todd Bowen, 13 anos, brinca um jogo perigoso com o velho militar facista, que vive sob o falso  nome de Dussander: Está sempre o ameaçando com a polícia, se ele não contar velhas histórias  sobre a experiência no regime totalitário. O que a princípio parece motivado por uma curiosidade  mórbida, migra para um relacionamento de influências perversas mútuas: O jovem se deixa levar  pelas influências do militar e reproduz no seu cotidiano partes dos ensinamentos nazistas, enquanto  o idoso vê-se revigorado e disposto a tentar novamente algum tipo de maldade contra minorias  abandonadas na sociedade, para as quais as instituições estatais não dão a mínima. Tudo começa  com o medo: Um de seu passado, outro de seu presente e resulta na violência assumindo o 

comando, como forma de retaliação contra o que a sociedade os fazia passar por se sentirem  inferiorizados. 

Embora, pareça estar tirando argumentos de um chapéu, para aqueles experimentados no assunto  “autoritarismo”, cuja biblioteca básica desconhece limites, este é um ponto pacífico sobre a origem  do fenômeno, mesmo para os mais ilustres pensadores: O medo e suas variações. 

Mas de onde surge tudo isso? Há algo que possa ser feito? A resposta pode surpreender a maioria:  Toda violência e oposição a liberdade nasce dentro dos corações e mentes humanas e, embora isto,  em pequenas doses, não nos posicione na liderança da hieraquia de “monstros reais”, ou “inimigos  da liberdade”, como é o caso dos “homens-replicadores”, nem, com alguma sorte, nos “homens instituição”, que apenas cumprem com o seu papel de subserviência para com os aparatos estatais,  preservando uma parte da violência, mas, certamente, nos delega a lanterna desse ranking macabro,  onde está a maioria da população, que é o papel de “homem-reprodutor”. Talvez, reste alguma  confusão entre a similaridade entre “replicar” e “reproduzir”, eu explico: Diferentemente do que  possa parecer, quem reproduz violência não o faz com vistas de transformar a realidade num lugar  desolado e escabrosamente autoritário, como os que “replicam”, nem o faz com um senso de  impotência e subserviência diante da aparente imutabilidade da realidade, como é o caso dos  “instituíção”, mas sim porque é uma questão involuntária de sua natureza, quase como um tímido  vício, um pensamento equivocado, valores morais distorcidos, uma sensação mórbida de ousadia,  ou até o sentimento de ter sido injustiçado em algo pontual. Eles “reproduzem” porque os outros  “reproduzem”, e “reproduzir” aqui tem mais haver com troca, do que propriamente ser um agente a  serviço de um poder político desumano, ou um mero corpo docilizado, quase burocrático, a serviço  da preservação da violência das instituições e da sociedade.  

“O corpo”: A “violência de várzea” ou a “violência moleque” do “homem-reprodutor” 

Reproduzir as violências que sofremos podem causar desde pequenos transtornos até a morte de  pessoas ao nosso redor, além de criarem um ambiente tóxico que alimenta a pré-disposição de  alguns em desenvolverem certas doenças mentais ou uma tendência para a criminalidade. Não é,  portanto, inocente no sentido amplo, mas muito mais na raiz, já que ao ter certos comportamentos  não esperamos que eles sejam interpretados ou levados até as últimas consequências, mas como a  pedra que empurramos da montanha, apenas controlamos o impulso inicial, enquanto o resto fica  por conta da gravidade e ao gosto do acaso\: Pode não resultar em nada, bem como pode resultar em tudo. 

Como sou egresso do direito, além de acadêmico de filosofia, acredito que é possível classificar os  tipos de personagens dos contos que lemos, no livro “Quatro estações”, segundo o tipo de dolo: O  “homem-instituição” é o dolo eventual, que é quando se assume o risco de atingir as pessoas, com certas atitudes, mas não há preocupação real com o resultado final, já o “homem-replicador” é o  dolo clássico, “faço, o que sei que me dará um resultado oportuno” e, por último, temos o “homem – reprodutor”, que é a culpa consciente, faz-se determinada coisa sem que se deseje determinado  resultado. O exemplo se apresenta mais claro, como culpa consciente, no terceiro conto, porque é o  conto do cidadão médio, envolvendo laços familiares e de amizade, situações em que as pessoas  não estão deliberadamente tentando prejudicar umas as outras, mas o fazem por meios indiretos:  Como a violência doméstica que alguns dos protagonistas sofrem, o bullyng entre os amigos, a gangue de adolescentes mais velhos, que quer se provar forte e viril, cometendo pequenos delitos e  infrações, o jornalismo que reproduz a notícia de morte como um fato importante e a espetaculariza. Aposto, que se entrevistássemos os personagens, cada um daria uma perspectiva muito particular e, aparentemente, inocente, provavelmente até aceita socialmente, sobre suas formas de reproduções  da violência. Os pais abusadores diriam que só querem educar os filhos e prepará-los para a difícil  vida lá fora, os amigos, protagonistas, que bullyng é uma forma de rolar uma identificação entre  seus pares, tornando o ambiente descontraído e amigável, os adolescentes que só estão tentando se  impor socialmente, conquistar o sexo oposto e se divertir e, por fim, a mídia diria que só quer  informar, que sua missão é nobre e etc. 

De todos os possíveis desdobramentos para esses comportamentos descritos anteriormente, os mais visíveis, no conto, são o resultado da mídia e o da violência familiar. Enquanto, a rádio inflama a garotada a querer ser popular, procurando o corpo do garoto desaparecido, o que faz surgir uma rivalidade entre grupos que, por muito pouco, não resulta em outra tragédia, no comportamento familiar violento, os resultados só serão observados pelo narrador muito tempo depois, quando diz que alguns de seus amigos de infância tiveram destinos trágicos, sem entrar em pormenores de se estariam ligados ou não a infância difícil. A própria estória do garoto morto é uma incógnita, quando a olhamos atentamente, não passa tão longe do entrelaçamento com a vida dos protagonistas pobres e numa situação de violência. Pelo que é relatado, ele é oriundo de família humilde e estava coletando algo no campo que serviria de alimento quando desapareceu, não se sabe se foi vítima de um infeliz acaso, como o atropelamento por um trem, ou de algo muito pior, tudo que nos é permitido saber é que trabalhava, mesmo não tendo muita idade para assumir grandes riscos e responsabilidades e apareceu morto. 

O corpo, desaparecido, do jovem é um contexto, muito bom, para entrelaçar esses caminhos  narrativos, mostrando que mesmo que algo não nos afete com intensidade no dia de hoje, seus  possíveis reflexos podem, ou não, ocorrer no longo prazo e a violência, as vezes, é como as ondas  de um lago, se espalham difusas, quase imperceptíveis, mesmo que para as suas vítímas. 

“O método respiratório”: “A história é o que importa, não o narrador”, ou o “Homem panóptico” 

Talvez, você que sabia da existência de um quarto conto tenha se perguntado: Como eu amarraria  esta sequência confusa ao resto do livro? Pois bem, o último conto, talvez seja o ponto alto de tudo  que foi dito anteriormente. No clube, onde uma parte da elite reúne-se para ler livros que não se  encontram em outros lugares, beber bebidas caras, usufruir de móveis exclusivos, contar histórias  hilariantes sobre as outras pessoas e uma vez por ano, fazer o clássico “O conto de Natal”, do  personagem Scrooged, ao contrário, é uma baita alegoria sobre o que faz, quem observa tudo que  aqui embaixo ocorre. Sem precisar agir com violência, mas como que justificando a existência de  toda aquela que há. Não há, portanto, razão para elencar, dentre os tipos de dolo, o “homem panoptico”, como se fez aos outros, pois o panóptico não se sujeita ao sistema, mas é o coração  dele. Ali todo tipo de dolo está presente, ao mesmo tempo que nenhum, porque a justiça é para os  desprovidos, bem como a violência efetiva e seus efeitos.  

Focault dizia que o panóptico é o lugar que observa tudo, mas não é observado por ninguém. Logo,  o lema da lareira: “A história é o que importa, não o narrador”, poderia ser facilmente substituído  por outros similares como: “Os dados importam, não o fornecedor deles”, “O dinheiro importa, não o pagador”, “Os resultados importam, não o trabalhador” e por ai vai, é só montar o seu. Estamos  todos abaixo do “Clube”, lá as histórias são consideradas boas, principalmente, se envolverem  pessoas em situações infelizes horripilantes. Após terminar o relato aterrador de uma mulher, que  veio tentar a vida na cidade grande, engravidou, sofria preconceito por ser solteira, fez o pré-natal  em condições dificílimas e perdeu a cabeça num acidente as vésperas do parto, dando a luz a um  menino, que foi adotado por pessoas ricas, o sócio do clube parece nos dizer que tudo teve um final  feliz porque o filho, atualmente, pode vir a ser um reitor de uma universidade. O verdadeiro horror  está no detalhe: A indiferença para com os outros, menos favorecidos, não no relato macabro em si. 

Um detalhe curioso, que permeia a obra, é a, aparente, existência de consciência de classe dentre os  membros do Clube, enquanto os demais personagens, em suas trajetórias pelo universo da violência, estão unidos circunstancialmente, mas separados, no que diz respeito a encarar as consequências, de forma individualizada, de suas escolhas e das escolhas que são feitas por eles. Algo, que nos lembra  o mundo real, em que bilionários tem suas dívidas perdoadas, solicitações de empréstimos  

suntuosos dos cofres públicos atendidas, enquanto pregam o estado mínimo e individualismo para o restante de nós. O estado, ou leviatã, está para os ricos, assim como o Clube está para seus  membros. Cada um tem sua porção de bebida no clube, servida de maneira igualitária, além de  liberdade para usufruir das instalações e a oportunidade de falar, enquanto Andy sofre nas mãos das  “irmãs” sem qualquer auxílio, Dussander e Toby são responsabilizados pelo que fizeram de maneira individualizada, os garotos seguem caminhos separados, até a tragédia final de suas vidas e David,  embora aceito no Clube, teme por sua segurança, como se não lhe fosse permitido entender tudo  que se passa ali, algo que nos faz pensar que ele provavelmente é como um das classes baixas,  admitido ali, apenas, para ser observado mais atentamente, ou satisfazer algum capricho. 

Red, Dussander, Tobby, os garotos e David, o que os une? Além das relações conflitantes com a  questão da violência, que também os subjuga, um pouco daquela indiferença, do mesmo tipo dos  que só observam, somados a um certo senso de auto-importância e individualismo em seus próprios, pequenos, universos, mesmo estando todos, igualitariamente, abaixo daquela esfinge, no centro de  tudo, que vigia a todos. Cada um, rezando sua parte da cartilha da violência, sabendo, ou não, que,  eventualmente, sofreriam por tê-lo feito. Nós, do mundo real, passamos por dilemas semelhantes,  quando somos, por exemplo, incentivados a nos defender, mesmo que com armas, contra o que se  interpõem entre nós e nossa liberdade. Até ,mesmo, homicídios, nos diz a lei, podem ser  justificáveis quando há legítima defesa. O que não nos contaram é que, nada garante que a justiça  irá interpretar o que aconteceu da mesma maneira que nós, mas certamente o fará, da forma mais  benéfica possível, se houver alguém do panóptico envolvido. Por fim, apenas Andy e Red  encontram alguma redenção, deixando tudo para trás em busca de um recomeço, próximo do  oceano pacífico, onde Dufresne diz “ser um lugar sem memória, em que um homem pode  finalmente ser livre”. Já o resto, com exceção do narrador de “O corpo”, segue o caminho inverso,  aptos a se tornarem mais uma das histórias do clube que, sendo deste mundo e tendo alguns  integrantes participantes da vida em sociedade, as vezes, parece estar em um lugar entre dimensões,  não habitado por pessoas reais, com problemas reais, mas cuja verdadeira substância e intenção só  podemos especular, como o fez David, sem nunca ser ousado em demasia, ao fazer certos tipos de  perguntas e ter que pagar o preço.

 

*Diego Stevan Lopez, 36 anos, Eletrotécnico, Bacharel em direito e acadêmico de filosofia.  Um anarquista, liberal demais para a extrema esquerda e esquerda demais para os liberais. Escritor nas horas vagas, tendo alguns microcontos publicados na coletânea “Horror em Domicílio”, da editora Literatura errante. 

Podcaster no Aletheia e Hitcombo podcast. 

Cético na medida, porque ninguém gosta de ceticismo excessivo