Quando pensamos em filmes que abordam temas históricos quais gêneros e/ou estilos são mais lembrados? Fazendo um breve exercício de memória e especulação, muitas respostas podem ser dramas, biografias e filmes de guerra. Fomos bombardeados desde muito jovens com a ideia de que a História poderia apenas ser representada nos cinemas por alguns formatos de narrativa específicos (talvez por conta das produções que chegam com maior frequência ao circuito comercial e, por que não, por conta de nossas experiências de assistirmos a determinados tipos de obras nas escolas?) Porém, essa percepção não poderia ser limitadora para as possibilidades audiovisuais e para a encenação artística do passado?
E se pensássemos nos resultados e nos impactos de assistirmos a uma produção de temática histórica construída dentro das características do terror? Seria algo difícil de imaginar? O gênero seria ofuscado pela necessidade de abordar questões e períodos históricos? A História seria subestimada pela obrigação de criar uma narrativa de gênero com suas convenções? Esses primeiros questionamentos podem começar a ser enfrentados se considerarmos dois aspectos: 1) o terror tem tantas possibilidades interessantes e diversas para construir metáforas e 2) não se pode exigir a História apropriada pelo cinema seja trabalhada da mesma maneira que os historiadores e professores.
Levando-se em conta os dois pontos acima citados, o terror nos oferece a oportunidade de imaginar (e por que não sentir) como seria estar em determinada situação e ocupar certa posição social diferentes de nossa realidade. Ao invés de nos aproximarmos de temas históricos a partir do pensamento racional encorajado por pesquisas acadêmicas, o cinema de horror pode fazer o convite para experimentarmos ficcionalmente (dentro do possível para a empatia) essas questões através de estímulos sensoriais e emocionais, que podem nos dar medo, angústia, repulsa, tensão e tantos outros sentimentos. Assim, pode ser possível ter experiências bastante significativas com dois exemplos de filmes de terror com uma carga histórica marcante: “Sob a Sombra” de 2016 e “O Nó do Diabo” de 2018.
“Sob a Sombra”, dirigido por Babak Anvari, se passa em 1988 em Teerã, quando a guerra entre Irã e Iraque chegava ao oitavo ano. Shided e a filha Dorsa são atormentadas pelos bombardeios disparados contra a cidade e seu apartamento, enquanto uma revolução ocorre no país. Lutando para ficarem juntas e sobreviverem, as duas ainda precisam lidar com algum mal que as assombra. Nessa sinopse, a narrativa abrange o contexto histórico do Irã a partir do fim da década de 1970: a protagonista vive os efeitos da Revolução Iraniana de 1979, que instituiu um Estado teocrático, de radicalismo islâmico e subordinação das mulheres; e toda a trama é mergulhada no conflito com os iraquianos, causado por disputas estratégicas sobre o controle do Golfo do Pérsico de fontes de petróleo e iniciado em 1980.
Por si só, a ambientação daquela sociedade no período específico já é aterrorizante, afinal a tensão constante de viver sob a ameaça de ataques à bomba traz sensações mais aflitivas que a ficção. Shided, Dorsa e os vizinhos ficam em estado de alerta permanente para se refugiar num abrigo antibombas a qualquer mínimo aviso de bombardeio iminente. O marido de Shided e o filho de uma das vizinhas são levados a áreas arriscadas mais próximas do centro do combate, tendo que trabalhar como médico e soldado, respectivamente. As janelas dos prédios recebem fitas adesivas para conter os estilhaços de vidros quebrados em caso de ataques. E, além de tudo isso, o lançamento de um míssil sobre o prédio desencadeia uma série de eventos que acentuam os conflitos dramáticos.
Simultaneamente, a protagonista também se encontra em um cenário de horror por ser mulher no Irã da década de 1980. Sob a justificativa de proteger os valores morais e as tradições religiosas, o Estado islâmico impôs sérias restrições às mulheres, que são exemplificadas pelos fatos ocorridos em torno da vida da personagem: é proibida de retomar os estudos universitários de medicina por ter se envolvido em associações políticas de esquerda; ouve do marido que pode ser uma ideia razoável se dedicar apenas ao cuidado da filha e não de atividades fora de casa; é criticada pelo síndico por ser a única mulher do prédio que dirige e, portanto, a culpada de deixar o portão da garagem mal fechado; e fica amedrontada com o risco de ser denunciada por ter vídeos tidos como impróprios pelo governo.
O que poderiam ser subtramas que correm paralelas, na verdade, se tornam uma combinação poderosa de terror produzido pela opressão social. A guerra (simbolizada pelo míssil atirado no prédio) traz mais uma ameaça. Por um lado, Shided e Dorsa seriam atormentadas por um djinn, uma entidade sobrenatural da mitologia árabe pré-islâmica; por outro, entretanto, ele representa em nível simbólico a violência praticada às mulheres por diferentes práticas sociais. As convenções de gênero são usadas para metaforizar como a protagonista é violentada por supostamente não ser uma boa mãe (o desaparecimento da boneca de sua filha), agir fora dos padrões impostos (o livro de medicina guardado e os vídeos de ginática) e sofrer com uma brutalidade sexista (a burca aparecida na criatura e a cobrança irracional das autoridades para que ela use a vestimenta em todas as ocasiões).
Já “O Nó do Diabo”, dirigido por Ian Abé, Gabriel Martins, Ramon Porto Mota e Jhésus Tribuzi, é uma narrativa dividida em cinco contos sobre as mazelas deixadas pela escravidão no Brasil ao longo do tempo. Esses capítulos recuam no tempo para contar e escancarar os horrores desse sistema violento, começando em 2018 numa propriedade rural sob a perspectiva de um cruel “leão de chácara” e voltando até uma fazenda canavieira séculos atrás no Brasil colonial. Ao longo dos cinco contos, eventos brutais extrapolam passado, presente, vida e morte para demonstrar como explorar o trabalho alheio através de castigos físicos, humilhações, torturas psicológicas e racismo é uma verdadeira fonte de terror.
De maneira mais imediata, os roteiros de cada trama apresentam consequências assustadoras da escravidão nas ações de seus personagens. A mentalidade racista, elitista e colonizadora ainda impera nos discursos sectários que inferiorizam as populações de renda e os territórios marginalizados; conduz a diversas formas de violência que se alternam entre crimes contemporâneos e atrocidades características da dominação da casa-grande em relação às senzalas; e desdobra a crueldade também numa dimensão emocional de desolação frente ao poder exercido pelos grandes latifundiários. Em outro sentido, a estrutura dramática confere protagonismo às reações, formas de resistência e valores culturais dos africanos escravizados e de seus descendentes para mostrar que não são meras vítimas passivas – eles enfrentam através de revoltas, fugas, formação de quilombos e influência da cultura dos ancestrais.
As cinco pequenas histórias também demonstram como as mazelas do regime escravocrata precisam ser entendidas a partir de linhas de continuidade entre passado e presente. Apesar de formalmente a abolição da escravidão ter acontecido em 1888, o filme expõe como a liberdade e a igualdade de fato não foram efetivamente estabelecidas para a população negra no Brasil, ao pontuar símbolos de violência que perduram. Por exemplo, a simbologia de um vilão recorrente sob a figura do Senhor Vieira, a atmosfera significativa criada pelo contraste entre luzes e sombras e a combinação angustiante entre ruídos diegéticos e trilha sonora cumprem a função de interligar diferentes épocas sob os horrores do escravismo.
Com essa abordagem, não são forçadas as escolhas dos diretores de desenvolver os capítulos a partir de subgêneros do terror. À exceção do quarto conto (mais próximo de um road movie de jornada mística com elementos que remetem à morte, como o cenário desolador, sangue nas pedras e caveiras pelo solo), os demais se articulam dentro de convenções do gênero sem diminuir ou menosprezar os temas delicados com os quais lidam. Há uma história de psicopata para o “leão de chácara” cruel que absorve o racismo do patrão; uma história de casa mal-assombrada para a propriedade que armazena o sofrimento de gerações de escravizados; uma história de vingança para as duas irmãs escravizadas que resistem contra o senhor de escravizados e seus jagunços; e uma história de zumbis para os jagunços que perseguem escravizados fugitivos e para os africanos que fazem ressurgir seus ancestrais assassinados.
Graças às decisões tomadas por “Sob a Sombra” e “Nó do Diabo”, temos dois exemplos de como o cinema de gênero não enfraquece a História nem muito menos as necessidades cinematográficas ficam à mercê dos conteúdos históricos. Pelo contrário, o horror oferece uma diversidade grande de possibilidades para a representação do passado, especialmente ao mobilizar emoções e estímulos de medo, aflição e tensão para reconstruir passagens extremamente duras e assustadoras da história da humanidade. Isso porque o terror é político e consegue dramatizar críticas contundentes sobre os mais variados assuntos, inclusive representações conservadoras/limitadoras da História e violações graves à vida de sujeitos e grupos sociais ao longo do tempo.