Euller Felix*

Não é incomum vermos críticos, seja de cinema ou de literatura atribuírem um valor muito menor do que a maioria dos fãs acreditam que Stephen King tenha. Muitas vezes, essas falas de que o autor não mereça tanto valor pela sua obra vem com uma série de argumentos que ou se referem ao fato de que a sua obra é mais “popular” e, em muitos casos, com algum preconceito com o gênero em que os livros estão inseridos.

Já quero dizer de antemão que considero todos esses argumentos são fracos e não se sustentam na realidade, como todo e qualquer preconceito artístico. Os livros de Stephen King mesmo sendo focados em monstros exteriores, horrores da vida cotidiana e criaturas horripilantes, tratam normalmente de sentimentos humanos de uma forma profunda e original. Ele simplesmente utiliza a literatura de horror para discutir esses temas, não focando apenas no drama, mas na relação entre as pessoas e como elas se sairiam nas mais diferentes situações, mesmo que elas sejam fantasiosas e improváveis.

Eu posso dar um exemplo de uma obra conhecida do autor e que, para além do monstro, discute questões essenciais sobre a natureza humana: estou falando do calhamaço IT – A Coisa. Para aqueles que não conhecem o livro e se lembram apenas do filme pode pensar que a obra se trata somente de uma criatura que vira um palhaço para matar criancinhas. Quem preferir ler a obra somente assim vai perder e muito. IT é um livro sobre amizade e afetos. Sobre desigualdades sociais, racismo e preconceito. Tudo isso pode ser encontrado na obra de King, além de ser uma grande história de horror.

Nos capítulos em que Stephen King dedica a cidade de Derry são exemplos de uma construção de atmosfera e identidade de uma população dentro de um denso livro. Todos os preconceitos e fragilidades humanas são expostas ali. Não jogado como elementos aleatórios, mas construtivos para a história do grupo de crianças que acompanhamos ao longo do livro.  Além de compreendermos tudo o que acontece na cidade e a motivação não só das personagens do livro, mas de todo o entorno da cidade e todas as pessoas que vivem ali.

Além de IT podemos falar de uma história que sempre é discutida e colocada como “um exemplo de como Stephen King é superestimado”, O iluminado. Quando as pessoas fazem isso sempre utilizam de argumento a obra adaptada por Stanley Kubrick e que não tem tanta relação com o livro, além de mudanças estruturais na obra. Sempre quando falam sobre isso dizem que o filme é incrível e que não conseguiram passar e ler o livro com o mesmo empenho. Aqui tem um grande problema: o de levar em consideração somente a sua subjetividade em relação a obra do que as qualidades técnicas da história.

O iluminado é um livro que conta não só a história de um hotel assombrado, é uma história sobre alcoolismo, vícios, dores, memórias e afetos. Tudo isso dentro de uma história de horror de arrepiar a alma. É um livro sobre questões humanas, e que mesmo que estejamos vendo um mundo cheio de fantasma aterrorizantes, aquilo que mais nos deixa com medo e horrorizados são as questões humanas e as relações entre aquelas personagens. É observando o vicio de Jack Torrance que vamos descendo lentamente até a loucura que culmina com uma perseguição para liquidar a vida de sua família. As coisas não acontecem do nada e o livro mostra isso. Não é só o hotel que é mal e assombrado, as pessoas também são. Mas, ao mesmo tempo, o livro nos fala sobre bondade, determinação, amor e vontade de sobreviver mesmo após tudo aquilo acontecer.

Poderia citar livro por livro do Stephen King e relacionar todos eles com questões humanas reflexivas que muita gente elogia em livros clássicos como os de Dostoievsky, Tolstói entre outros. Mas, infelizmente, há pessoas que não compreendem que esse tipo de literatura consegue discutir tão bem esses assuntos quanto dramas melodramáticos (e muitas vezes maçantes). Para algumas pessoas o alto conhecimento e a ideia de “alta cultura” ainda existem, e livros e filmes populares e de gênero não merecem nem a alcunha de arte. Para essas pessoas só me resta sentir dó, afinal, não irão reconhecer um bom livro nem que você atire um tijolo de 1110 páginas na cara.

* Educador, cientista social, pesquisador e crítico de cinema