Mike Flanagan tem feito um excelente trabalho em produções de horror, destacando-se como um dos grandes nomes do gênero. Não sabemos até onde Flanagan irá em sua trajetória como cineasta, mas sabemos que ele está indo muito bem: Doutor Sono (Doctor Sleep, no original) é, afinal, perfeito no que se propõe.
O filme é a continuação imediata de O Iluminado, clássico de Stanley Kubrick, de 1980. Após a tragédia que se abateu sobre a família de Jack Torrance (Jack Nicholson), mãe e filho conseguem escapar do assombrado Hotel Overlook e vão viver suas vidas longe de todo aquele horror. É assim que a história original, escrita por Stephen King, acaba. Entretanto, em se tratando de terror, sabemos que nem toda história possui um ponto final e, em Doutor Sono, podemos ver o que aconteceu a Danny Torrance (Ewan McGregor) 39 anos após os eventos do primeiro filme. Apesar de também existir um livro de nome homônimo, continuação de O Iluminado, não se enganem: a obra cinematográfica de Flanagan começa onde o filme de Kubrick termina, o que não abrange todos os pontos do livro de King, mas ainda é possível enxergar, ali, a essência da história.
No filme, somos apresentados a um universo expandido de O Iluminado. O que Dick Hallorann (Scatman Crothers) diz para Danny (Danny Lloyd) no primeiro filme agora se torna real: mais do que apenas imaginar, podemos ver que existem outros iluminados, outras pessoas que, assim como o menino, enxergam para além do que os olhos podem ver — e também são enxergados por seres que nem pensávamos existir. Um desses seres é Rose, The Hat (Rebecca Ferguson), parte da liderança do Nodo Verdadeiro (The True Knot, no original), um grupo de “vampiros” quase imortais que se alimenta do vapor de iluminados — ou seja, de seu “brilho”, sua força vital. Há séculos devorando almas de crianças iluminadas, agora eles possuem um novo alvo: Abra (Kyliegh Curran). Ela é a criança com mais brilho que eles já encontraram e, em tempos de escassez de iluminados, eles vão atrás dela com todas as forças. Entretanto, ela é amiga de Danny — um Danny adulto, destruído pelos traumas, pela bebida e pelos fantasmas, reais e imaginários.
Gosto muito de como desenvolveram Danny para tornar-se um homem que vive à sombra da violência do pai. Vejo, nesse arco, uma verdadeira trama de horror: apesar de os fantasmas do Hotel Overlook serem verdadeiramente assustadores, o que realmente assusta em O Iluminado é a capacidade de Jack causar mal a si mesmo e a sua família. Embora essa dinâmica não ocorra, diretamente, em Doutor Sono, há outra que me chama atenção por se tratar de uma estrutura tipicamente gótica.
O interessante em Doutor Sono não são tanto as novas personagens ou o destaque do “brilho”, coisa que não aparece muito no filme anterior. O que, de fato, me chamou a atenção é o quanto essa é uma história gótica adaptada a uma realidade contemporânea. O gótico pode ser definido sob muitos aspectos, mas, em termos narrativos, para além dos signos visuais que o acompanham (mansões assombradas, lugares escuros, cemitérios, caveiras, veludo, certa paleta de cores), existe o sentido estrutural dele, que é uma história dentro de uma história dentro de uma história. Para que o gótico funcione, é preciso haver um ciclo que se completa e recomeça. Como uma cobra que morde o próprio rabo, as maldições góticas terminam e recomeçam, trocando as personagens mas, em essência, permanecendo as mesmas. O verdadeiro horror contido no terror gótico não costumam ser os monstros, mas o trauma, especialmente aquele que leva uma pessoa a duvidar de si mesma.
Temos essa dinâmica muito clara em Doutor Sono. Enquanto no primeiro filme conhecemos um menino pequeno que tenta sobreviver à loucura (psicológica e sobrenatural) do pai, aqui temos esse mesmo menino, com seus quarenta e poucos anos que, ao crescer, tornou-se o pai. Esse é o primeiro elemento gótico da narrativa. Danny virou Jack; um Jack que tenta vencer seus instintos autodestrutivos, procurando ajuda nos Alcoólicos Anônimos e não formando uma família, como demonstração direta do medo de tornar-se uma versão do pai. O Danny adulto não possui vínculos, não tem um relacionamento, não tem filhos e somente vai se conectar com outro ser humano quando está quase com cinquenta anos, um jovem senhor que não vê mais para onde ir para fugir de si mesmo.
A grosso modo, existem dois tipos de gótico na literatura: o masculino e o feminino. Estes não são separados por questões de gênero no sentido de que um tipo representa os homens e, o outro, as mulheres; a classificação é feita a partir de um olhar que analisa a escrita do gótico, em seus primórdios, e as diferenças entre aquele escrito por homens e por mulheres. O masculino é aquele cujo medo é exterior: seja através de uma criatura que tenta atacar o protagonista ou esqueletos que surgem do nada, a ameaça é externa. Já o feminino se caracteriza pelo mal que vem de dentro; ele até pode ser personificado em alguma criatura ou assombração, mas sempre tratará de conflitos internos, de questões psicológicas. Talvez Stephen King escreva tão bem porque sabe balancear os dois tipos de gótico: suas personagens são atacadas exteriormente (o Mal que habita o Overlook, o Nodo Verdadeiro), mas isso só é possível porque elas já possuem questões psicológicas contra as quais lutar, o que as enfraquece (o alcoolismo e a violência de Jack Torrance e, posteriormente, de Danny).
Podemos ver, em Doutor Sono, a representação visual da mente de uma pessoa com dependência química. Seu mentor espiritual, Dick (Carl Lumbly), lhe ensinou a trancar os fantasmas que o atormentavam dentro de caixas mentais. É interessante perceber como Danny tem muitas dessas caixas em sua mente. E, embora elas não existam de fato, para ele são reais, já que o protegem de algo que, ele sabe, sempre o acompanhará. Ao decidir procurar ajuda e entrar para os Alcoólicos Anônimos, Danny não faz diferente do que já fazia com o mundo espiritual que o sobrecarrega: ele tranca sua dependência química em caixas mentais e luta contra ela quando o monstro dentro da caixa se debate e tenta se libertar.
Se Kubrick deixou isso um pouco de lado em O Iluminado, Flanagan concentra sua narrativa nesse fio. Apesar de grande parte da trama pertencer ao Nodo Verdadeiro e à Abra, são os fantasmas internos de Danny que ganham o protagonismo. Particularmente, sempre quis entender o que aconteceria com ele quando crescesse. Uma criança adorável exposta a um mal daquele tamanho — e, ainda por cima, com um dom que o obrigava a ver coisas que não gostaria — certamente não teria o mais feliz dos destinos. Contudo, mostrar o drama das cicatrizes emocionais de Danny talvez não seria o suficiente para segurar o filme, embora tenha seu valor. E é aí que entra Abra.
Ela é uma adolescente que, assim como Danny, também é iluminada. No entanto, os iluminados deste mundo correm riscos já que sempre há alguém faminto à espreita. Gosto da ideia de que as criaturas do Nodo Verdadeiro são vampiros energéticos, assim como o Hotel Overlook: para sobreviverem, precisam se alimentar do brilho de pessoas como Abra. Contudo, tal narrativa é apenas um meio para mostrar um fim: os ciclos góticos dentro da história de Danny.
Dick Hallorann, no filme de 1980, serve como o adulto iluminado que guia Danny, auxiliando-o tanto a entender melhor seu dom quanto a sobreviver. Diferentemente do livro, Dick morre salvando Danny. Até ali, poderíamos ler o papel de Dick como uma espécie do estereótipo do negro mágico, uma trope racista que sempre coloca personagens negros e sábios para ajudar o branco em sua jornada. No entanto, em Doutor Sono, vemos que Dick tornou-se um espírito amigo de Danny, acompanhando-o durante sua vida adulta e lhe dando conselhos de quando em quando, o que ainda perpetuaria tal estereótipo racista não fosse um detalhe: Danny faz o mesmo com Abra.
Um dos elementos mais importante em histórias góticas é a hereditariedade. A história dentro de uma história dentro de uma história é um recurso narrativo de labirinto — real e metafórico em ambos os filmes —, mas as maldições familiares (Jack, Danny e o alcoolismo) também são quebradas por redenções hereditárias. E, embora Jack seja o pai biológico de Danny e causador da maioria de suas cicatrizes emocionais, Dick é a figura paterna que, mesmo do além, auxilia Danny em sua jornada em busca de uma vida estável. É a voz de Dick que surge quando Danny está em um caminho tortuoso e também é ele quem diz ao homem atormentado que ele precisa deixar o medo de lado e abraçar quem ele é: um iluminado. Só assim poderá salvar a vida de Abra, assim como ele, Dick, sacrificou a própria vida para salvar o menino quarenta anos atrás.
As narrativas góticas, tradicionalmente, funcionam como forma de expressão para coisas escondidas. Os monstros do Overlook são reais ou imaginários? Jack enlouqueceu em sua bebedeira ou apenas foi tomado pelo hotel? A verdade é que não importa o ângulo pelo qual olhamos para a maldição dos Torrance, sempre veremos um mal espiritual que ressoa um mal psicológico há muito represado.
É interessante, ainda na linha do labirinto do horror gótico, que Danny termine O Iluminado saindo do Overlook, mas só consiga começar uma vida nova — ainda que no além, como mentor de Abra — ao voltar para lá. O hotel, apesar de não ser nenhum castelo típico dos romances do gênero, possui a atmosfera deprimente e assustadora retratada em histórias do tipo: tudo é exagerado, imenso e está em decadência. E, ainda assim, apesar de todo o horror que Danny viveu lá, ele sente-se, de certa forma, no lugar certo — e aí podemos encontrar o conceito freudiano de estranho-familiar, quando algo nos ressoa como casa mas, ainda ou por isso, é assustador. Assim como no gótico de Ann Radcliffe, o castelo (Hotel Overlook) apresenta a característica de ser tanto um local assombrado e, portanto, do qual queremos correr, como uma prisão para o mal, mantendo lá histórias de tragédias e contendo um mal maior (Rose, The Hat, a vampira energética que procurava matar Abra).
No romance gótico tradicional, o castelo é local familiar e também de aprisionamento, onde tanto a vítima encontra seus piores terrores como o vilão encontra sua prisão final. Em Doutor Sono, vemos que o Hotel Overlook atua como o castelo gótico, prisão e horror, enquanto Jack é vilão e vítima, assim como Danny que, a determinada altura, é possuído pela loucura do local e tenta assassinar Abra, alimentando, assim, a energia de sua casa. O duplo vítima-vilão é marca registrada de O Iluminado, mais do livro do que do filme, ainda que possamos realizar uma leitura mais humana também dos homens Torrance, especialmente à luz do novo longa. O duplo, também conhecido como doppelgänger, é “aquele que caminha ao lado” e possui sete possíveis modalidades dentro do gênero: o perseguidor, o gêmeo, o bem-amado, o tentador, a visão do horror, o salvador e o duplo do tempo. Na duologia de Stephen King e, especialmente, na cinematográfica, encontramos Jack e Danny como sendo, cada um, a face do perseguidor. Jack sucumbiu e permitiu que os horrores do Overlook lhe aumentassem a característica abusiva de sua personalidade, não conseguindo resistir ao impulso de destruição. Danny também não consegue resistir a ele durante algum tempo, sendo o espelho de seu pai. No entanto, diferente deste, Danny possui outro duplo, um mais forte que o de Jack: Dick. Ele e Danny são os salvadores. Danny, representando um duplo de si mesmo — perseguidor/salvador —, também trata do tema central das narrativas góticas: os elementos contraditórios da natureza humana, Bem vs Mal, um dependendo do outro para que haja um equilíbrio e um encerramento de maldição.
Como toda história gótica, é preciso que o ciclo, assim que quebrado, possua um encerramento que mostre a saída do ciclo geracional do mal. E é quando Abra, agora aceitando ser uma iluminada e uma versão melhorada de Danny, fala abertamente com sua mãe a respeito das coisas que vê e de seu acesso ao mundo espiritual, que acontece a verdadeira libertação. Danny deixa de ser seu pai para tornar-se Dick, na forma de mentor espiritual de Abra. No entanto, ao contrário do que aconteceu com ele quando criança, após os eventos traumáticos do Overlook, Abra não precisa esconder isso de sua mãe. Sendo honesta, ela quebra o ciclo de traumas insuperáveis e consegue lidar com seu dom, sem que ele se torne um fardo. O gótico não precisa existir para Abra, apenas a luminosidade resplandecente daqueles que são iluminados.