Junno Sena*

 

“Então você está com medo de ser?”, pergunta o personagem abertamente homossexual, Machen, para Garton, um homofóbico, em It: A Coisa, sugerindo que o rapaz que o assediou possa, também, ser gay.

Existe uma brincadeira com o real palpável nessa cena. Talvez não impacte leitores heterossexuais, mas consegue levar qualquer pessoa LGBTQIA+ aos seus anos no colégio. Em uma época onde era necessário conviver com o segredo de ser diferente.

Porém, se no mundo real uma pergunta como essa é apenas “zueira” de criança, aqui, o autor parece utilizá-la como arma contra aquele que pratica a violência. A cena presente no livro do palhaço Pennywise é apenas uma entre várias menções de King à comunidade gay que, apesar dos erros e acertos do autor ao redor da sua ‘representatividade’, abraçou o horror de King com fervor.

De Carrie a Pennywise, de Flagg a Wendy Torrance, diversos vilões e heróis foram apropriados pela bandeira LGBTQIA+, sendo utilizados como uma metáfora para suas próprias dores do mundo real.

E entre sangue de porco e maquiagem de palhaço, o mais curioso é como essas imagens construídas por um homem branco e heterossexual conseguiram conversar com existências que estão no espectro “oposto” em relação à ele. 

Enquanto procurei por uma razão para isso, a verdade é que a imaginação é o limite quando falamos em formas que o corpo queer — termo guarda-chuva utilizado para minorias sexuais e de gênero que fogem do sistema binário e cissgênero — encontra para se expressar. O gênero de horror, e especialmente o trabalho do autor, é apenas mais um meio utilizado para falar de si mesmo.

James Jenkins, fundador da Valancourt Books, responsável pela publicação de diversos livros do nicho de terror explica que a ligação entre gay e horror surge na literatura gótica, onde era impossível para autores como Lewis, Beckford e Lathom, “escreverem abertamente sobre ‘temas gays’”. “Então, eles expressavam essas temáticas de uma forma ‘aceitável’, usando o gênero de terror como meio” (JENKINS, 2017).

Desta forma, trazer Carrie como uma alegoria para o trauma LGBTQIA+ no colegial, ou como a fatídica cena do sangue de porco é transformada por drag queens — pessoa, geralmente do sexo masculino que usa roupas e maquiagens para imitar os significantes do gênero feminino — em suas performances artísticas; tudo isso é apenas uma resposta a vontade da comunidade em contar suas histórias, mas ainda assim não saber como ou quais caminhos tomar para isso.

Ao ressignificar o trabalho de Stephen King, um novo campo parece se abrir para encontrar personagens, personalidades e situações relacionáveis com o real. As obras do autor estão longe de serem perfeitas. Entre polêmicas com personagens negros, estereótipos gays e heroínas pouco verossímeis, o destaque de King ficou para como, em momento algum, deixou de lado o povo marginalizado. 

Em outras palavras, mesmo utilizando palhaços alienígenas e hotéis com personalidade própria, King não “soltou a mão” de ninguém, sempre utilizando o “horror do real” como fonte de inspiração. No caso do povo LGBTQIA+, o horror da homofobia.

O horror do real

Enquanto assassinos em série tomavam as narrativas de filmes de terror, pessoas LGBTQIA+ entendiam que, no mundo real, sua identidade era motivo para dar medo. Como pontos fora da curva na sociedade, esses indivíduos tomavam o lugar de verdadeiros “monstros”.

Talvez o mais curioso disso, que leva o pânico moral ao seu ápice, é que pessoas queer não precisavam fazer nada para tomarem esse espaço, apenas existir.

Porém, se identidades marginalizadas eram vistas como monstros, assim como Jordan Peele comentou para o The New York Times, King viu “a sociedade como o monstro mais assustador”. O curioso dessa visão é como o trabalho de King é, constantemente, associado a puro entretenimento. Mesmo trazendo questões como alcoolismo, violência doméstica e outros males sociais, os livros do autor, para seus leitores e cinéfilos, se tornou ficção científica com tons de horror.

Uma prova disso é como quando tratamos em “horror social”, o nome de Stephen King é um dos últimos a serem lembrados. Porém, Ursula K. Le Guin, escritora estadunidense, acredita que é nesses lugares onde o político e social ganham ainda mais destaque.

“Toda ficção tem peso ético, político e social e, às vezes, os trabalhos com maior peso são aqueles que, aparentemente, são ficções escapistas de autores que se declaram como ‘além da política’, ‘apenas entretenimento’” (LE GUIN, p. 199). 

Sendo visto apenas como “entretenimento”, ele uniu o “útil” ao “agradável”, criando ícones lembrados por toda sua audiência.

Mas, a forma como King trabalha seus medos não é aleatória. Pelo contrário, seus personagens abertamente LGBTQIA+, negros e mulheres foram criadas a partir de uma “culpa” que o próprio escritor já revelou em entrevistas anteriores. Em conversa para a Playboy, King, ao ser questionado sobre ter dificuldade em escrever personagens femininas verossímeis, o autor respondeu:

“Eu entenderia a crítica sobre minha escrita aos meus personagens negros. Tanto Hallorann, o cozinheiro de O Iluminado e a Mãe Abigail em A Dança da Morte são caricaturas de heróis negros, vistos através de lentes cor-de-rosa de culpa liberal branca”.

Estendo essa visão de King sobre sua própria obra a seus personagens LGBTQIA+ e todos os males que os mesmos sofreram ao longo de suas histórias.

A culpa branca, a culpa heterossexual

E é enquanto o medo da figura “queer” gera uma reafirmação do que é tradicional — o Código Hays é um bom exemplo de como esse movimento ocorre —, King percorre o caminho oposto, transformando esses indivíduos dissidentes em seus protagonistas.

Além de uma vontade palpável de querer mostrar o mundo de forma diversificada, King também parece procurar “vingar” seus personagens, construindo um mundo onde algum tipo de justiça recaia sobre aqueles que violentaram esses corpos fora do padrão.

O autor nem sempre sai bem sucedido nesta tarefa. Pelo contrário, algumas vezes, o mesmo se vê caindo em uma mar de estereótipos negativos para representar a comunidade. Mas ainda assim, há uma tentativa clara em deixar o mundo mais “colorido”. Em A Dança da Morte, por exemplo, Flagg, a força maligna, é descrita como bissexual.

Já em It: A Coisa, o autor usa todo um capítulo para explorar as relações de Derry com a comunidade gay, além de evidenciar a homofobia existente em cada esquina. Em Jogo Perigoso, conhecemos Ruth, uma mulher lésbica que representa tanto uma das alucinações de Jessie em sua cama, como também uma das figuras mais fortes que a mulher já conheceu.

“O cartão trazia um carimbo ilegível do Arizona e informava que Ruth entrara para uma comunidade lésbica. Jessie não se surpreendera muito com a notícia; chegara até a refletir que talvez a velha amiga, que era capaz de ser extremamente irritante e surpreendentemente, ansiosamente, meiga (por vezes no mesmo fôlego), tinha enfim encontrado no grande tabuleiro da vida o furo destinado a encaixar o seu pino desconforme”, trecho de Jogo Perigoso.

Entre outros, King vai trazer a homossexualidade como algo demoníaco no livro Desespero, uma visão perversa da identidade em O Iluminado e diversos outros personagens que dão as caras em Insônia e Talismã.

Porém, nos altos e baixos, o efeito dessa “culpa” descrita de King também traz algo de diferente para essa comunidade: uma força intrínseca ao ser diferente. 

Em It: A Coisa, por exemplo, Beverly é uma das personagens de maior destaque no segmento infantil. Muito disso se deve ao fato da personagem ser a única mulher do grupo. O mesmo serve para esses outros grupos excluídos.

Mesmo usando e abusando do estereótipo de “negro mágico” e trazendo uma visão perversa do que é ser LGBTQIA+, King consegue relacionar seus personagens ao público e, ao mesmo tempo, mostrar que existe algum tipo de força no simples fato de ir na direção oposta ao que é “normal”.

“Uma coisa que Kim diz em sua entrevista para o documentário é que os protagonistas de King são, constantemente, vítimas de bullying. Isso é tão relacionável com pessoas queer ou qualquer outro grupo marginalizado de pessoas que sentem que não se encaixam”, diz Bryan Fuller em entrevista para o Cinemablend.

Carrie, a rainha

Mais do que criar novas narrativas queer, King tenta mostrar a força que é ser “diferente”. Aos olhos da cultura pop, por exemplo, Carrie não é mais “estranha”, mas a verdadeira “rainha do baile”.

“Você pode olhar para Carrie simplesmente como uma narrativa ‘reze para que os gays saiam’. E qualquer outro tipo de força externa vista como maligna, que está ocupando uma criança e precisa ser removida através da reza é uma narrativa queer”, explicou Bryan Fuller.

Uma forma clara para se entender essa lógica presente no trabalho de King é compreendendo outro criador do horror: Clive Baker. Em algumas entrevistas, Baker, conhecido pela franquia Hellraiser e Livros de Sangue, fala sobre como transformar os “monstros”, os “outros” e os “de fora” nos protagonistas de sua narrativa.

“O horror costuma ser reacionário. É sobre retornar ao status quo — o monstro é um ‘de fora’ que deve ser expulso do ‘santuário’. Mas, diversas vezes, eu tento colocar monstros que vem ‘de fora’ e que convidam alguém a se juntar a eles em seu ‘santuário’”.

Mesmo que ainda exista uma culpa branca e heterossexual palpável em seu trabalho, com protagonistas “comuns” observando um mundo caótico — como a própria Sue Snell de Carrie, a Estranha —, King tenta dar algum tipo de autonomia ao que é diferente.

Além de Carrie, um exemplo claro é a presença marcante de Mãe Abigail em A Dança da Morte e John Coffey em A Espera de Um Milagre.

Não se encaixar é doloroso demais, mas com seus monstros, King consegue captar uma visão diferente dessa dor. Aqui, ser diferente não é apenas motivo para sofrer violência, mas o que pode garantir a sua sobrevivência. 

Até porque, se já sobrevivemos a tantos males no mundo real, por que iríamos sucumbir na ficção? Existe algo mais “queer” do que um pensamento como esse?

 

 

* Negro e não-binárie, Junno Sena é mestre em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), formado em comunicação e jornalismo pela Universidade Veiga de Almeida (UVA) e, atualmente, trabalha como produtor de conteúdo para o canal no Youtube Corpo Negro, Mídia Branca e para a Legião dos Heróis. Atualmente, pesquisa raça, representatividade e pornografia, mas também trabalha como ilustrador e designer nas horas vagas.