Quando assisti The Dead Don’t Die pela primeira vez, no ano passado, o considerei um filme estranho. Embora não necessariamente ruim, senti que havia algo que não compreendida ali. Um apocalipse zumbi começa e os personagens, ao invés de correrem, tentando se defender, parecem amortecidos, simplesmente esperando pela tragédia. Aqueles que acreditam que existe algo de errado acontecendo, não tomam grandes providências para evitar o transtorno. E a maior parte da população simplesmente ignora os avisos constantes nos jornais e o trabalho dos policiais locais, que relatam um possível despertar zumbi. Isso me parecia surreal.

Mas o ano era 2019 e, naquele, que agora parece tão distante, os zumbis assemelhavam-se mais a metáforas sobre o capitalismo (coisa que também está presente no filme de Jim Jarmusch) do que a algum problema de ordem de saúde. Então 2020 chegou e, com ele, a pandemia. O terror, junto da ficção científica, vem falando sobre pandemias e vírus há muitos anos. O tema é popular entre diretores e roteiristas, que parecem enxergá-lo com clareza quando pensam em motivos que levariam personagens a sentirem-se encurralados, aterrorizados. Não é à toa: saber que um agente invisível está à solta, pronto para lhe infectar e matar ao menor contato, e que você não pode fazer nada a respeito a não ser ficar em casa e cuidar-se, é de encher o coração de medo. Mas, nos filmes, sejam eles sobre pandemias ou sobre zumbis, geralmente os personagens possuem muitas cenas de ação. Eles correm em meio ao perigo, paramentados, buscando soluções, lutando contra o governo, denunciando indústrias farmacêuticas, fazendo pesquisas… No entanto, 2020 nos mostrou que uma pandemia possui muito mais marasmo do que ação.

Em The Dead Don’t Die, nos deparamos com uma história simples: o policial Ronnie (Adam Driver), junto do xerife, Cliff (Bill Murray), iniciam sua jornada reclamando de como agora o dia demora para escurecer. Logo ficamos sabendo que isso acontece em decorrência de um problema na rotação da Terra, que tem causado muito mais do que o efeito bizarro de um dia eterno. Os animais passam a comportar-se de maneira estranha, anomalias ocorrem em todos os lugares, mas, na pacata cidade de Certerville, no interior de algum lugar dos EUA, isso não parece ter muita importância para além de um aborrecido “a luz do sol fora de hora fez com que eu me atrasasse”. No dia seguinte, entretanto, os mortos saem de suas tumbas e as pessoas da comunidade começam a ser assassinadas, tudo sob o olhar blasé de Ronnie.

Parece absurdo que toda a ação do filme, em meio a um verdadeiro apocalipse zumbi, resuma-se a fazer uma ronda pela cidade a fim de alertar as pessoas para que fiquem em casa, pois os mortos estão à solta. Não há grande espanto. No máximo, um descrédito escarnecedor — mas nem isso dura muito, já que os mortos não tardam a aparecer e alimentarem-se. Os que zombaram e os que acreditaram, todos viram comida de zumbi, não importa a forma como encararam a nova realidade.

The Dead Don’t Die é um filme anticlimático por essência. Seu humor concentra-se no absurdo, ressoando, muitas vezes, as peças de Eugène Ionesco. Seu ritmo é lento, seus personagens são apáticos e tudo gira em torno de uma eterna repetição: acordar, tomar café, dizer para as pessoas ficarem em casa, ouvir a mesma música de sempre, tentar sobreviver. Não é à toa, portanto, que ele tenha dividido opiniões da crítica no ano passado. Assim como não é uma grande surpresa que ele esteja em minha mente desde que a pandemia começou. 2020 é, de certa forma, um grande acordar, tomar café, dizer para as pessoas ficarem em casa, ouvir a mesma música de sempre, tentar sobreviver. O pessimismo letárgico com o qual estamos encarando as milhares de mortes diárias faz par com a reação dos personagens do filme de Jarmusch.

Ronnie repete, durante todo o filme, a frase “Isso não vai acabar bem”, quase de forma enigmática. A princípio, seus colegas de trabalho tratam isso como uma espécie de esquisitice supersticiosa do rapaz. No entanto, quando a questão do porquê ele diz tal coisa é levantada, a resposta é um simples: “Porque eu li o roteiro até o fim”. Ronnie sabe que aquilo acabará mal, mas não há nada que ele possa fazer. Frases como “cientistas não sabem do que falam” permeiam o filme, e não são diferentes daquilo que ouvimos diariamente. Adolescentes, que chegam à cidade, estão mais preocupados em comprar lanches do que na iminente invasão zumbi.

O fim do mundo de Jarmusch chega enquanto tomamos café, conversamos com amigos e fazemos piada sobre a nova vizinha, que parece ter vindo de outro planeta. Nos pega de surpresa em nossos momentos cotidianos e nos faz questionar até que ponto podemos fazer algo, já que tudo está fora do nosso alcance, de qualquer forma.

Como um Bérenger, de O Rinoceronte, que percebe a anormalidade, mas não é acreditado, e termina por aceitar que não há nada a fazer perante uma catástrofe que parece impelir as pessoas a seus piores comportamentos, a policial Mindy (Chloë Shevigny) divide-se entre momentos de incredulidade, desespero e, finalmente, aceitação. De certa forma, ela representa muitos de nós. Ronnie aceita o pandemônio, sabendo que sair incólume daquela história é impossível. Quer isso signifique a morte ou uma sobrevivência forçada, mas com cicatrizes, sabemos o quanto aplica-se a este ano.