John Waters é provavelmente um dos meus diretores norte-americanos favoritos e um dos que, curiosamente, melhor fez a passagem do underground para um cinema mais popular. Além, é claro, de marcar o seu lugar na cultura pop. Caso o leitor não esteja familiarizado com esse nome, Waters é um diretor homossexual que ficou conhecido como um dos grandes nomes do cinema underground norte-americano e que tem como principal marca o fato de ostentar orgulhosamente o “mau-gosto” das suas obras. O clássico cult Pink Flamingos, por exemplo, mostra duas famílias brigando para saber quem são as pessoas mais asquerosa do mundo com direito a canibalismo, zoofilia e a famosa e infame cena onde a drag queen Divine come cocô de cachorro.

Nos anos 80 e 90 ele começou a dar novos rumos para sua carreira e fazer filmes mais palatáveis para o grande público. Ele virou uma figura tamanha dentro da cultura pop americana que já apareceu nos Simpsons, em O filho de Chucky, já foi jurado de RuPaul’s Drag Race etc. Dentro dessa fase dos anos 80 e 90 ele fez a primeira versão de Hairspray, Cry-baby (com o astro em ascensão Johnny Depp) e Serial Mom, lançado aqui no Brasil como Mamãe é morte. Aproveitando a data festiva (se tudo der certo esse texto sai no dia das mães), me pareceu uma boa ocasião para comentar sobre essa pequena pérola. 

Lançado em 1994 o filme é uma paródia dos filmes e séries sobre crimes reais e serial killers. Nós acompanhamos Beverly Sutphin (interpretada maravilhosamente pela Kathleen Turner) uma dona de casa perfeita, carinhosa com os filhos, que adora a vida doméstica, recicla o seu lixo e tem como hobbie observar pássaros. Mas, além dessa camada aparente, Beverly também atormenta vizinhos com ligações obscenas anônimas, envia cartas apaixonadas para serial killers (tem uma cena impagável do marido dela encontrando as fotos que serial killers famosos enviaram para ela) e mata violentamente os desafetos da sua família (como o professor de matemática que criticou o seu filho ou o rapaz que menosprezou a filha dela).

Waters aqui está bem mais contido do que no começo da sua carreira e sua visão ácida e demolidora da sociedade norte-americana segue firme e forte. Beverly acaba sendo talvez a personagem menos hipócrita desse mundo de subúrbio americano, ela não finge ser uma dona de casa para na verdade ser uma assassina cruel, ela na verdade acaba sendo as duas coisas ao mesmo tempo. A sua volta estão pessoas hipócritas, mesquinhas, fofoqueiras e falsos moralistas. Waters acaba por retratar também o culto aos serial killers nos Estados Unidos, o espetáculo midiático e uma sociedade que buscava bodes expiatórios para culpar. O impacto do “satanic panic” (uma histeria coletiva bizarra que levou pessoas a acusarem donos de creche de serem satanistas e jogos de rpg de levarem jovens a cultuarem o demônio) ainda pairava sobre o país e é visível aqui como sempre buscam culpar filmes de terror e produtos de mídia que falam sobre crimes ao invés se auto-analisar enquanto sociedade.

Mas se você não quiser ver por essa ótica tudo bem também, você ainda terá um filme divertidíssimo e com várias referências a filmes de terror do Herschell Gordon Lewis e William Castle. O Waters brinca com o formato de filmes policiais colocando letreiros debochados (“nenhum dos envolvidos dessa história ganharam dinheiro algum”) ou horários nas cenas para dar mais “credibilidade” para o que ocorre. O humor mais pastelão se mistura com comentários ácidos (como uma banca de souvenirs relacionados aos assassinatos cometidos pela protagonista) e com a personalidade de Beverly que na minha opinião é uma assassina para se colocar no mesmo panteão de “assassinos engraçadinhos” junto com o Freddy Kruger. O auge disso acaba sendo a icônica cena onde Beverly mata a senhora sem-educação que se recusava a rebobinar as fitas da locadora com uma pata assada de cordeiro.

 Se você quer ser introduzido no mundo caótico do Waters, mas não quer cair de cabeça nos… hum, “grandes momentos” dele (leia-se “não quero ver uma drag queen comendo cocô ou sendo atacada por uma lagosta gigante”), acho que Mamãe é de morte é um excelente começo. Fica aqui a recomendação, o desejo de um feliz dia das mães e recomendação para que você pelo amor de deus não se esqueça de rebobinar as fitas.