Como esse é o primeiro texto da cobertura da décima segunda edição do Cinefantasy cabe dizer algumas palavras sobre o festival antes de falarmos sobre o filme. Essa edição já é por si só histórica, toda a curadoria dos filmes, de todas as mostras foram feitas por mulheres. Um olhar único e de extrema importância para o cinema, não só brasileiro, como também mundial. Não é de hoje que as mulheres vem sendo sumariamente apagadas da história – podemos lembrar dos debates da semana passada sobre a autoria do filme “A Lenda de Candyman” dirigido por Nia da Costa, um debate que sequer aconteceria se o diretor fosse um homem. Além de outros tantos exemplos, como Alice Guy Blache, uma figura importantíssima para a construção do cinema como arte e que sequer foi mencionada em diversos livros sobre a história do cinema. Tudo isso já faz dessa uma edição histórica de festivais no Brasil.

Para além disso, como sempre, o Cinefantasy conta com ótimos filmes em sua programação e o primeiro que comentaremos aqui é o “Carro Rei”, filme da diretora Renata Pinheiro. Vemos uma história sobre uma espécie de insurreição das maquinas contra os seres humanos e que conta com o apoio das próprias pessoas. Todo o filme suscita diversas reflexões sobre a vida humana, sobre nossas relações com as maquinas – sejam elas quais forem -, com a natureza e com as outras pessoas.

O ponto de partida do filme é inclusive uma decisão bem déspota dos políticos da cidade, de proibir que qualquer carro que não seja novo trafegue pela cidade. Isso afeta completamente a vida de todas as pessoas, tanto aquelas que trabalham com seus carros, como os personagens centrais da obra, que tem uma antiga companhia de taxi com carros antigos – a maioria deles por volta de 2003 – e também de projetos sociais que normalmente dependem de doações para sobreviver e utilizam carros que obviamente foram doados e não são mais 0km.

Ninho (Luciano Pedro Jr) se junta a Zé (Matheus Nachtergaele) seu tio para reconstruir um carro antigo da família, um uno de 2003 onde sua mãe morreu em um acidente. Ninho consegue ouvir os carros, conversa com eles e cria uma revolta das maquinas contra essa lei que tira de circulação os carros antigos. Ele batiza então o seu uno reconstruído de Carro Rei.

Há toda uma reflexão sobre as maquinas, sobre ferramentas e tudo mais. Em uma fala de Zé onde ele comenta sobre como as ferramentas são na verdade uma extensão do nosso próprio corpo eu me peguei pensando naquela cena inicial do clássico filme de Stanley Kubrick “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, em como o osso foi jogado e enquanto estava no ar foi se transformando em nave e fomos de uma civilização primitiva para uma certa dominação das maquinas e do espaço. A cena final com o Zé fazendo uma interpretação primitiva me pareceu uma referencia de Renata Pinheiro ao filme de Kubrick.

“Carro Rei” tem toda uma potencia de uma obra digna do que se propõe e principalmente do que ela é. Tem em sua narrativa problemas específicos do Brasil, como as decisões tomadas por cúpulas politicas que pouco se importam com as pessoas e estão bem mais interessadas em lucros do que qualquer outra coisa. Vemos também uma reviravolta da humanidade e da natureza contra as maquinas, não tão bem desenvolvida quanto eu gostaria, mas ainda assim muito potente visualmente. É um filme inventivo, que fala sobre revolução, contra-revolução, humanidade e sua relação com o todo, com todos, com o meio e com a natureza.

Não posso encerrar o texto sem falar de como Matheus Nachtergaele está em seu papel como Zé. Ele consegue roubar toda a atenção quando aparece, é impossível tirar os olhos dele e de sua performance. Quanto mais vemos se desenvolvendo sua relação com as maquinas mais ficamos fascinados por aquele personagem.

O filme está disponivel no site Innsae.TV e todo o Cinefantasy pode ser assistido gratuitamente lá.

(Autocrítica escrita após a publicação do texto)

No começo desse texto citei a importância do Cinefantasy e dessa edição e dei uma pequena contextualização histórica a respeito do apagamento das contribuições das mulheres no cinema. Citei a diretora Renata Pinheiro, mas acabei não citando os nomes das atrizes e personagens que fizeram parte do filme e da história. Peço desculpas por isso.

Cito aqui agora Clara Oliveira que faz a personagem Amora e Jules Elting que faz a personagem Mercedes. Ambas tem papel importante no filme e foi imperdoável não cita-las no texto. Peço desculpas as duas.